Diretor-geral da Abin nega grampos clandestinos e propõe legalizar escutas

O novo diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), Márcio Paulo Buzanelli, 55, vai ao Congresso nesta semana dizer que o órgão não faz escuta telefônica. Defende, no entanto, que a Abin tenha autorização legal para adotar essa prática, desde que seja apenas “para casos que afetam a segurança do Estado brasileiro”.

Buzanelli rebate acusações da oposição de que seus agentes estariam grampeando deputados envolvidos nas investigações do “mensalão”, como as feitas pelo deputado Antonio Carlos Magalhães Neto (PFL-BA). “A Abin não tem o menor interesse em questões gremistas, político-partidárias, sindicais”, diz ele, ao responder a acusações feitas por parlamentares de oposição ao governo do presidente Lula.

À frente da Abin há quase três meses, o diretor-geral diz que uma de suas metas principais é superar o estigma de “arapongagem” que a ditadura imprimiu aos serviços de informação. “É o passado que não passa, o pecado herdado. Isso estigmatiza, como um número tatuado em um campo de concentração que não se consegue mais tirar.”

Em meio à reengenharia em curso, nesta semana Buzanelli encaminhará à Casa Civil o primeiro plano de carreira para os servidores da Abin desde a abertura política e promoverá o primeiro seminário internacional sobre a atividade de inteligência.

Buzanelli falou à Folha, na sede da agência, em Brasília, na tarde da última quarta-feira, dia da semana que ele reserva para atender os servidores da Abin.

Folha – O que mudou no serviço de inteligência do país desde o regime militar?

Márcio Buzanelli – A instituição é um ente do ambiente que a envolve e, naturalmente, sofre todos os fatores de influência. Nos anos 70, ela era produto de regimes autoritários. Era um serviço de inteligência voltado, em primeiro lugar, para a segurança do regime, do Estado forte, autoritário, centralizador.

Hoje existe o Estado democrático de Direito. O produto disso é um serviço de inteligência integrado ao espírito da época em que vivemos, em plena observância ao Estado democrático de Direito. Isso é constitutivo da Abin, está na sua divisa, porque faz parte do texto legal, assim como a defesa dos interesses nacionais, da lei e da ordem, da integridade do país.

Folha – Que focos tem hoje a Abin?

Buzanelli – Nosso foco hoje é a prevenção aos crimes transnacionais [terrorismo e tráfico de drogas, armas e seres humanos]. Não temos defesa para isso. A defesa é a atividade de inteligência. Por isso é que a atividade de inteligência se diferencia da atividade policial: ela precede o fato doloso em si.

Além dos crimes transnacionais, existe aquilo que afeta a biodefesa, a biossegurança, o meio ambiente. Temos uma ação predadora muito grande no meio ambiente brasileiro, principalmente na Amazônia. Biopirataria é um caso específico. Evasão de espécimes animais. A Abin atua complementarmente às organizações que são destinadas a isso.

Folha – A Abin trabalhou no caso da febre aftosa?

Buzanelli – Trabalhou. Até mesmo para verificar se não havia evidências concretas de dolo [intenção]. Temos muito caso de transposição de fronteira por gado que vem do Paraguai para o Brasil. Como é que isso veio para cá? Houve falha nos controles? Houve dolo?

Folha – E houve dolo?

Buzanelli – Não encontramos nenhuma evidência clara nesse sentido.

Folha – Qual a conclusão?

Buzanelli – Falta de controle, dificuldades na execução de medidas de controle e fiscalização. Temos uma fronteira altamente porosa, proprietários com terras dos dois lados. Temos facilidades comuns a países que, como o nosso, têm 16 mil quilômetros de fronteira seca ou de fácil transposição. O controle é muito difícil.

Folha – Corrupção na administração pública é alvo da Abin?

Buzanelli – A Abin procura encaminhar aos órgãos competentes quando tem informações. Mas não é objeto da Abin trabalhar nisso preferencialmente.

Folha – Como fixar a fronteira entre órgão de Estado e de governo, e evitar aparelhamento?

Buzanelli – Temos tido a felicidade de ter um bom entendimento por parte do governo e dos integrantes da Abin. Então, não se misturam as coisas. É água e azeite, bem claro.

Folha – Na sua gestão ou sempre foi assim?

Buzanelli – Falo em especial agora. Embora não tenha tido uma posição que me permitisse perceber isso de maneira clara, também acredito que [não houvesse aparelhamento] nos períodos anteriores. O órgão de inteligência é de Estado. Por natureza, ele está acima dos governos, dos interesses de partidos.

Folha – Como o senhor encara o estigma do regime militar?

Buzanelli – Essa é uma questão muito importante. Nós, que servimos no passado -eu, particularmente, e outros tantos que estão aqui-, nunca tivemos oportunidade de ver ou praticar qualquer tipo de atividade que fosse condenável e que se atribui ao antigo serviço de inteligência. Mas fica realmente um estigma. É o passado que não passa, o pecado herdado. Isso estigmatiza, como um número tatuado em um campo de concentração que não se consegue mais tirar.

Não houve uma mudança de sigla apenas. São métodos, princípios e procedimentos totalmente diferentes. O invólucro de tudo, que é o ambiente em que se insere esse serviço de inteligência, é outro. Os tempos mudaram.

Folha – Um exemplo do que se fazia e não se faz mais.

Buzanelli – A Abin não investiga pessoas, não prende -e antes também não prendia, porque isso é da atividade policial- pessoas. Não é intrusiva. É um serviço de assessoramento do presidente da República. No passado, era mais um serviço que produzia informações para a segurança do Estado. Servia a um modelo de Estado que, à época, era um modelo que convinha ao país. Tínhamos o Leste e o Oeste, a Guerra Fria. Havia signos ideológicos para dividir porções do mundo. E o Brasil não podia ser alheio a isso. Hoje não existe mais o branco e o preto. Existe o branco, o preto e as várias tonalidades de cinza, o multilateralismo. E nós nos moldamos a isso. Senão não poderíamos atender aos altos interesses do Estado brasileiro.

Folha – Neste mundo novo, quais os desafios da Abin?

Buzanelli – O primeiro, e talvez um dos mais importantes, é se institucionalizar e ocupar o espaço que deve e merece ter dentro no país: ser vista pela sociedade como um instrumento de ações de governo no interesse do Estado brasileiro.

Folha – Como?

Buzanelli – Com uma série de ações. A primeira é trabalhar para evitar crises de imagem. Segundo: trabalhar essa imagem, que ela produz, mas que não corresponde à realidade. A realidade da Abin não é essa que as pessoas muitas vezes vêem. Isso é um mito -e ofusca.

Folha – O nome da Abin apareceu associado a episódios turbulentos da história recente do país, como as fitas do BNDES e o escândalo de corrupção nos Correios. A agência participou?

Buzanelli – Temos de mostrar claramente que ela não fez essas coisas. Só que não há como ficar respondendo a acusações. É muito difícil você dizer que a Abin esteve ou não esteve em tal lugar. Provoca estresse institucional. Toda hora ficar desmentindo, [dizer que] a Abin não faz grampo. Não tem competência legal para usar esse tipo de técnica. Nós bem que gostaríamos de ser incluídos neste dispositivo legal [que autoriza fazer escuta], de ser fiscalizados pela autoridade judicial, pelo Ministério Público.

Folha – Trabalhará para isso?

Buzanelli – Vamos trabalhar junto com o Congresso Nacional, onde existem muitos parlamentares com essa percepção, no sentido de que a Abin seja integrada. Queremos ter o mandado legal para também fazer [escuta]. Isso seria para casos que afetam a segurança do Estado brasileiro. A Abin não tem o menor interesse em questões gremistas, político-partidárias, sindicais. A Abin não trabalha com os vários movimentos sociais.

Folha – Parlamentares que atuam na CPI do mensalão afirmam ter sido grampeados pela Abin.

Buzanelli – Refuto essa acusação.

Folha – No início de dezembro, a Abin promove um seminário internacional sobre serviços de inteligência. Qual o objetivo?

Márcio Paulo Buzanelli – É uma forma de divulgar o que a instituição faz e também de difusão do conhecimento mais elevado que temos hoje. Esse pessoal que vem de fora normalmente tem diferentes visões da atividade de inteligência.

Temos especialistas da Europa Oriental, que há pouco tempo viviam sob o regime socialista -caso da Romênia-, e temos outros com experiência avançada -países democráticos, com longa tradição do exercício da fiscalização e do controle da atividade de inteligência pelo Congresso, como os Estados Unidos.

São experiências muito próprias de cada um desses países, que têm muito a contribuir para o aprimoramento da nossa capacidade de melhor servir ao Estado brasileiro.

Os americanos são profundos conhecedores desse tema. Atravessaram guerras, períodos de conflito e, mais recentemente, vêm sendo desafiados pelo crime organizado transnacional. A criminalidade transnacional é um tema que governa a agenda internacional. Como os EUA trabalham a política de prevenção ao terrorismo? É muito importante que nós, adequadamente, trabalhemos essa questão, até como ponto importante da agenda bilateral. O Brasil, embora não tenha sido atingido diretamente pelo terrorismo, o é indiretamente. Por quê? Porque as políticas governamentais contra o terrorismo produzem reverberações que nos atingem, até financeiramente.

Folha – Está pronto o projeto de lei que definirá o terrorismo?

Buzanelli – O GSI [Gabinete de Segurança Institucional, ao qual a Abin é subordinada] não está elaborando um anteprojeto de lei, mas uma política de prevenção, um conjunto de ações para enfrentar essa questão e determinar que órgãos vão executá-las no âmbito governamental.

Folha – Soube que o sr. recebe os servidores toda quarta-feira.

Buzanelli – Existe o cliente interno e o externo. Temos muito que trabalhar com os nossos oficiais de inteligência, recuperar a auto-estima, fortalecer o núcleo moral da instituição, inocular algumas coisas que por vezes ficam esquecidas, a integridade pessoal, o compromisso com a verdade. Toda quarta à tarde dedico a receber pessoas que têm algo a dizer, uma contribuição.