Crime organizado impõe sua própria lei nas prisões brasileiras Francesc Relea Em Buenos Aires

A morte de mais de 30 presos na penitenciária de Benfica (Rio de Janeiro) mostrou mais uma vez que a lei da selva impera nas prisões brasileiras. O medo de uma nova explosão de violência paira agora sobre a penitenciária de Bangu 3 (Rio), que abriga uma das maiores concentrações de presos de bandos de traficantes rivais. Pode ocorrer em qualquer prisão. No ano passado, 303 presos foram assassinados por outros detentos em diversas prisões, e ocorreram mais de 4 mil fugas, segundo dados de uma exaustiva pesquisa sobre a situação nas prisões brasileiras que será divulgada nos próximos dias.

“Superpopulação. Violência. Corrupção. Condições carcerárias absolutamente desumanas e degradantes. Homens e mulheres tratados como animais. O sistema penitenciário do Brasil vive uma crise profunda”, são algumas das conclusões da socióloga Julita Lemgruber, depois de percorrer durante seis meses as prisões de vários Estados brasileiros para um trabalho financiado pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e o Ministério da Justiça. Lemgruberdirige o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes do Rio de Janeiro e foi a responsável pelo sistema penitenciário do Estado do Rio durante quatro anos.

Os números sobre a situação nas prisões exigem poucos comentários. Nos últimos nove anos o número de presos duplicou. De 148.760 em 1995 passou para 308 mil em 2004. A superpopulação nas prisões é a causa de muitos dos males que assolam o sistema penitenciário do Brasil. Entram duas vezes mais presos do que são libertados. Somente no Estado de São Paulo, a diferença entre os que entram e saem dá uma cifra de mil novos presos por mês. Em 11 dos 26 Estados a média mensal de ingressos supera 5% da população carcerária. Diante das investidas da criminalidade, a sociedade e os meios de comunicação pedem leis mais duras.

“É preciso explicar à população o custo-benefício das penas de prisão. A prisão é muito cara e piora as pessoas. Deve-se reservá-la para os criminosos perigosos”, replica Lemgruber, que critica um sistema que qualifica de hipócrita: “Querem nos fazer acreditar que estamos mais seguros porque as penitenciárias estão cheias. Mas no Rio de Janeiro, por exemplo, a polícia só esclarece 4% dos homicídios. Em outras palavras, de cada 100 homicídios 96 ficam impunes”.

Faltam centros de detenção em condições. Entre os presos com penas firmes, 36% se amontoam em delegacias, em condições que violam a legislação brasileira e a internacional. Os cuidados médicos têm graves deficiências: 58% dos Estados não têm qualquer convênio com o Sistema Único de Saúde na área penitenciária, do qual dependem as verbas federais para os hospitais do sistema prisonal. Um número significativo de presos sofre de doenças graves. A Aids continua sendo a que tem maior incidência nas prisões, já que 1% do universo carcerário — 2 mil presos — é portador do vírus HIV. Levando em conta que, de acordo com a recomendação da Organização Mundial de Saúde, são proibidos os testes obrigatórios, cabe supor que o número real seja mais elevado.

A pesquisa da doutora Lemgruberrevela que 60% dos Estados mantêm a censura à correspondência dos presos, contrariando o que estabelece a Constituição brasileira. A formação dos funcionários brilha por sua ausência. Apenas 20% dos Estados têm escolas de formação, o que indica a falta de compromisso das autoridades com a capacitação do pessoal penitenciário.

Com estes dados em mãos, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, explica que em vez de uma linha de combate à criminalidade o Brasil criou uma linha de montagem da criminalidade: “Começa nas instituições para menores, continua na polícia, na lentidão do Poder Judiciário e chega ao sistema penitenciário. Um menino de 12 anos de uma favela que cometa um pequeno furto ingressa num desses organismos, ali tem uma escola do crime, depois passa pela experiência dos diversos corpos policiais (federal, civil ou militar), cai nas mãos do Poder Judiciário e finalmente acaba na prisão. Esse rapaz que entrou por uma falta leve sai formado em criminalidade, seqüestro, homicídio e extorsão. É preciso desmontar esse sistema que impera no Brasil e buscar outro”.

A pesquisa da doutora Lemgruberchama a atenção sobre a corrupção que impregna a área de segurança pública no Brasil, que inclui policiais e funcionários penitenciários e o Poder Judiciário. “Tudo se compra na prisão. Desde a liberdade, graças a uma fuga, até armas, telefones celulares e drogas, através dos guardas, que vendem de tudo. Até as visitas não autorizadas tem preço. Os funcionários vendem visitas íntimas não autorizadas.”

Os controles internos não funcionam, apesar de em muitos Estados as prisões contarem com equipamentos detectores de metais e de raios X para impedir a entrada de armas e celulares. A combinação da corrupção com negligência explica o que aconteceu na semana passada na prisão de Benfica, inaugurada recentemente. Tudo começou com uma fuga parcialmente frustrada. A vigilância interna, a segurança externa, a fragilidade do recinto — os presos conseguiram quebrar as paredes sem dificuldade — tudo falhou em um local cujo chefe de segurança foi destituído duas semanas antes da rebelião por denúncias de maus-tratos aos presos. “Quando uma prisão entra numa situação de rebelião, o controle do estabelecimento fica na mão dos presos”, diz Clayrton Nunes, diretor do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), que reconhece que em algumas dependências de Benfica os detentos fabricavam armas artesanais.

Prisão dos mais perigosos

O sistema penitenciário brasileiro é competência de cada Estado, mas o governo federal, através do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, tem a responsabilidade de orientar a política penitenciária. As prisões são administradas pelos Estados porque não existe no Brasil uma única prisão federal, apesar de há 30 anos todos os governos terem prometido sua construção.

O Departamento Penitenciário, que sofreu uma profunda remodelação com o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, apresenta como prioridades para este ano a aplicação de penas alternativas, a construção de cárceres federais, a formação de funcionários penitenciários e o investimento em inteligência penitenciária. O Ministério da Justiça considera que as penas alternativas são uma solução para reduzir a superpopulação carcerária, evitar a reincidência, impedir a entrada nas prisões de pessoas que cometeram delitos leves e reservá-las para os criminosos mais perigosos e violentos.

Dos 308 mil detentos, 20% (60 mil) poderiam cumprir a condenação com a prestação de um serviço à comunidade, trabalhando por exemplo em um hospital. Atualmente cerca de 30 mil pessoas cumprem penas alternativas no Brasil, número que representa 10% da população carcerária. No Reino Unido a porcentagem chega a 80% dos condenados.

Segundo vários especialistas, as possibilidades de recuperação de quem cometeu um delito considerado leve são muito superiores quando o condenado não cumpre a pena em regime fechado. Apesar disso, as possibilidades de reincidência são menores. Uma pesquisa realizada no Distrito Federal (Brasília) indica que menos de 5% dos que cumpriram penas alternativas voltaram a cometer crimes. No aspecto econômico, um preso em regime fechado custa ao estado R$ 800 por mês, enquanto o custo de uma alternativa não passa de R$ 70.

Bandos rivais

Um aspecto muito polêmico do sistema penitenciário brasileiro é a separação dos presos, praticadas pelas autoridades em 72% dos Estados, segundo a facção ou grupo criminoso com que se identificam. Esse dado mostra que o Estado está longe de exercer um controle eficaz sobre as prisões. O governo do Rio de Janeiro empreendeu o caminho oposto, numa estratégia deliberada de colocar juntos presos de grupos rivais. “É um erro garrafal”, opina Lemgruber. “A tragédia da penitenciária de Benfica é resultado dessa estratégia”, acrescenta. Naquela prisão havia 800 presos do Comando Vermelho (o maior bando de traficantes de drogas do Rio) e cem do Terceiro Comando (o segundo maior bando) quando ocorreu a rebelião. Estavam todos juntos, em uma relação de 8 para 1. Todos os mortos eram do Terceiro Comando.

Segundo Lemgruber, “idealmente o Estado não deve se submeter ao capricho de facções criminosas. Os presos não deveriam ser separados segundo a organização ou bando a que pertencem. As prisões são para todos os presos sem distinção. Mas isso é em um mundo ideal, onde o Estado cumpre com suas obrigações e os presos têm assistência jurídica, saúde, não há violência nem corrupção”.

Apesar dos níveis de corrupção nas penitenciárias onde as armas entram com facilidade e em que o Estado não tem qualquer controle do que ocorre no interior, o governo do Rio de Janeiro ratificou esta semana a política de manter juntos os presos de facções diferentes. “Ou seja, haverá mais mortes”, adverte Lemgruber.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves