Mais de 50% de atos de tribunais são inconstitucionais O prefeito da cidade paulista de Severínia teve uma idéia que lhe pareceu ótima para garantir a sua reeleição: aprovou uma lei para isentar todos os contribuintes de tributos no ano eleitoral.

Os ministros do Tribunal Superior do Trabalho (TST) entenderam que deveriam engordar seus salários com diferenças que lhes teriam sido, supostamente, extraídas por planos econômicos. Outros tribunais pelo país afora logo fizeram o mesmo.

O governador do Paraná, mesmo sabendo que a competência para legislar sobre saúde pública, comércio externo e regime de portos é da União, criou uma lei para proibir o cultivo, a exportação, a industrialização e a comercialização de transgênicos no estado.

Os deputados federais e senadores brasileiros, na mesma batida, criaram uma reserva de mercado para eles próprios. Com o apelido pomposo de “candidatura nata”, os congressistas aprovaram lei que lhes garantia o direito de candidatura sem ter que disputar a legenda. Só para eles. Nos quatro exemplos acima, o que se vê é um certo desrespeito pela Constituição Federal. Não foi por outra razão que todos foram anulados. No caso do município, pelo Tribunal de Justiça do estado. No caso das normas estaduais e federais, pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

O povo de Severínia teve que pagar seus impostos, como sempre, e o prefeito não se reelegeu. O governador Roberto Requião teve que recuar na proibição dos transgênicos. Os ministros do TST e todos os juízes que tentaram a mesma jogada, ao menos dessa vez, não faturaram o que pretendiam. E os congressistas continuam tendo de disputar legenda para concorrer nas eleições.

O cenário faz parte do levantamento feito pela revista Exame, com apoio do site Consultor Jurídico (www.conjur.com.br), sobre o índice de inconstitucionalidade das leis brasileiras (Veja os números no final do texto). O estudo também faz parte do movimento de respeito às leis brasileiras, proposto pelo Fórum Nacional de Comunicação Jurídica, que lançou, no último dia 5, o Dia da Cidadania.

Os dados mostram que 82% das leis dos municípios do estado de São Paulo levadas ao exame do Tribunal de Justiça foram consideradas inconstitucionais, durante 2002 e 2003. Em Minas Gerais, o índice apurado foi de 77,4% desde o começo deste ano. O levantamento mostra também que 56% dos atos de tribunais federais e estaduais são, igualmente, inconstitucionais.

No mesmo pecado incorrem 51 de cada 100 leis estaduais e, finalmente, 18.6 de cada 100 leis e normas federais. Mas isso não quer dizer que as demais sejam constitucionais. É que a maior parte das ações não chega a ser examinada por questões técnicas.

Ou porque o pedido foi feito de forma errada ou porque quem pediu não tinha “legitimidade” para isso, ou seja, não tinha nada a ver com o caso. Nesse contexto, enquadraram-se mais de 60% das Ações Diretas de Inconstitucionalidade, as ADIs, levadas ao STF. Isso não quer dizer que haja algo de errado com as leis questionadas, mas também não significa que elas seriam absolvidas se fossem a julgamento. Apenas 21,1% das normas federais foram confirmadas pelo STF.

Obviamente, não se pode afirmar que a amostragem de leis e normas questionadas correspondam ao universo total das leis e normas brasileiras. Mas, sendo uma indicação mensurável da anomalia, entende-se que o índice é admissível cientificamente, como referência.

País fora da lei

“O Brasil está se tornando um país inconstitucional”, comentou o ministro do STF, Marco Aurélio, ao tomar conhecimento do levantamento. O advogado criminalista, José Luís de Oliveira Lima, disse que “é impressionante a capacidade de certas autoridades em desrespeitar a Constitução. Alguns políticos, infelizmente, ainda não aprenderam que o estado democrático de direito se constrói respeitando os preceitos constitucionais”. O advogado Arnaldo Malheiros diz que “se é para desrespeitar as leis, melhor nem fazer uma Constituição”. De acordo com ele, “a idéia de que grandes crises se resolvem atropelando a Constituição foi enterrada junto com o Plano Collor”.

Para o cientista político Roberto Romano, o alto índice de inconstitucionalidade das leis brasileiras mostra que no país vigora “a soberania da autoridade em detrimento da população”. Ou seja: a autoridade “governa em causa própria” e quando a norma não se ajusta à cultura, prevalece a norma. Ele disse ter ficado “impressionado” com os números. “O valor das leis, sobretudo quando elas determinam os direitos individuais e sociais, é muito pouco apreciado, para não dizer desrespeitado”, observa.

O estudioso da Constituição, Ives Gandra Martins, lembra que o governo, na área tributária, edita leis mesmo quando sabe que elas são inconstitucionais. Como apenas uma pequena parte das pessoas procura a Justiça e os demais continuam arrecadando, explica, o arrecadador fica no lucro. “Até que o Supremo julgue a Ação de Inconstitucionalidade que beneficie a todos, o governo já terminou — e passa o esqueleto para o governo seguinte”, explica o advogado.

A constatação do alto grau de inconstitucionalidade das leis brasileiras afeta a vida das pessoas e a economia. “Uma componente fundamental para o ambiente dos negócios é a estabilidade jurídica”, lembra o presidente da Abdib (Associação Brasileira de Infra-Estrutura e da Indústria de Base), Paulo Godoy. “Os números apurados são assustadores. Mostram a instabilidade de um cenário onde uma lei ou uma regra vale apenas alguns dias. Isso espanta o investimento, afasta o capital e incinera empregos”.

Para Ives Gandra, “não há democracia sem Constituição”. Se as autoridades governamentais são as primeiras a desrespeitá-la, diz o especialista, “drena-se o oxigênio do Estado de Direito, que é a segurança jurídica”. Construídos os enormes passivos, os governantes, mesmo sem sustentação jurídica, vão a público identificar nos cobradores os inimigos da pátria.

Para outro conhecedor do sistema constitucional brasileiro, o advogado Fernando Albino, o grande número de Ações Diretas de Inconstitucionalidade prejudicadas, ou seja, descartadas sem exame de mérito, “mostra o uso político desse meio de controle direto de constitucionalidade”. Nos seus 16 anos, completados agora, no dia 5 de outubro, a Constituição foi emendada 44 vezes. As mudanças quase sempre se destinam a atender conveniências do Poder Executivo federal, claro. Os governadores, com menor margem de influência nas regras federais, trombam com mais freqüência com a Constituição. O ex-território federal, Rondônia, encabeça a lista das leis revogadas: 66,7% delas foram consideradas inconstitucionais pelo STF. O estado melhor posicionado é Tocantins, com 24%.

Para o procurador-geral de Justiça do estado de São Paulo, Rodrigo Pinho, “a edição de leis casuísticas visa privilegiar determinados segmentos da população em detrimento da maioria”. Exemplos não faltam, como o das praias privatizadas de Guarujá, que desde 1999 o MP tenta, sem sucesso, devolver à coletividade.

Além disso, argumenta o chefe do Ministério Público paulista, há os conflitos entre poderes quando os vereadores por meio de lei invadem a esfera de atribuições do poder executivo.”O prefeito veta a lei, mas a Câmara restabelece a norma”. Esse tipo de conflito é recorrente e se reproduz entre as assembléias legislativas e os governadores. Outros motivos costumam ser a criação de cargos por quem não pode fazê-lo e as insistentes tentativas de contratar sem o necessário concurso público.

Mais veemente, o secretário-geral da Transparência Brasil, Cláudio Weber Abramo, enxerga no alto índice de inconstitucionalidade dos atos legislativos uma combinação de dois fatores preocupantes. O primeiro é o que ele chama de “desfaçatez com que legisladores tentam empurrar decisões descabidas goela abaixo da sociedade”. O segundo fenômeno é “a incompetência irresponsável de quem tem o dever de conhecer a Constituição e não têm atenuantes para a enorme freqüência com que erram”.

Abramo pode estar exagerando um pouco. Mas uma coisa é certa: os legisladores, juízes e mandatários que se têm como autoridades públicas não dão o melhor dos exemplos. Assim, exigir da comunidade respeito às normas e obrigações é como aquele pai que, com o cigarro na boca diz ao filho para não fumar.

Para o ministro do STF, Gilmar Mendes, que já foi advogado-geral da União, o mais assustador do levantamento é o índice de inconstitucionalidade dos atos de tribunais. Afinal, diz, por mais que se possa criticar os legisladores de Rondônia ou de outros estados com menos tradição jurídica, é bem menos sustentável a situação dos tribunais do país que, supostamente, deveriam respeitar ou ao menos conhecer a Constituição.

Cláudio Abramo, diz mais: “Quando juízes desprezam a Constituição com tamanha desenvoltura, reforça-se a imagem tão depreciada que o Judiciário tem entre a população”. Os desencontros, para o ministro Marco Aurélio, têm muitas razões. Mas uma delas é fulminante: “Enquanto acharmos que podemos consertar o Brasil fazendo leis, não sairemos do lugar”.

O ministro do STF, Cezar Peluso, ressaltou que os números demonstram “que há uma qualidade decrescente na produção das leis entre as esferas federal, estadual e municipal”. Segundo ele, “isso significa, sem nenhuma dúvida, que o legislativo federal está mais preparado para editar leis que o estadual, e este mais que o municipal”. Para o ministro, “trata-se de questão de capacidade de assessoria técnico-jurídica, que é muito pequena na esfera do legislativo municipal, cujo número de leis inconstitucionais é alto, um pouco melhor na área estadual, em que o número é menor, e boa no legislativo federal”.

Peluso afirma que “o fenômeno também demonstra que o país sabe reagir à elaboração de leis inconstitucionais, mediante recurso ao Judiciário”. Ele destaca também “a tarefa do STF na preservação do entendimento unitário da Constituição da República como fator de certeza e segurança jurídica”. E finaliza: “As distorções dos níveis de qualidade da produção legislativa refletem os desníveis educativos e culturais do país”. O juiz Julier Sebastião da Silva, da 1ª Vara Federal de Mato Grosso, disse que o desrespeito à Constituição Federal “acaba por solapar a própria democracia, propiciando a instalação da ilegalidade e da violência como métodos de governo e do exercício do poder político”. O juiz lembra, ainda, que “a insegurança jurídica é sempre pressuposto e prenúncio de Estados injustos e ditatoriais”.

O advogado José Roberto Batochio cita Winston Spencer Churchil quando ele afirmou que o traço que mais identifica uma verdadeira democracia é o respeito que suas autoridades têm pelo ordenamento jurídico. “No Brasil, são precisamente esses agentes da autoridade os que mais maltratam a Constituição, procurando moldá-la aos seus programas de governo, metas fiscais, combate à criminalidade, interesses corporativos e quejandos”, diz. Segundo ele, “aqui não são os governos que se ajustam à Constituição, mas a Constituição que é ajustada aos governos”.

O advogado Eurivaldo Neves Bezerra diz que “o Brasil é um dos poucos países do mundo em que se diz que a lei não pega”. Para ele, a expressão “é um reflexo do disparate das leis promulgadas com a desconexão e inércia de nosso Poder Executivo”. Ele conclui que “apenas um pedido de socorro ao Poder Judiciário poderá frear a incongruência de nossos legisladores ao buscarem as mais diversas leis”.

O professor titular de Direito Financeiro da USP, Régis Fernandes de Oliveira, ressaltou que o índice de inconstitucionalidade “revela o alto grau de despreparo do Poder Legislativo na produção de leis”. Para o professor, o problema disso é a criação de instabilidade que ocorre obrigando a corrida ao Judiciário.

Antonio Riccitelli, coordenador de extensão da faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), diz que é “desafortunado o país desconhecedor e desrespeitador de sua Constituição”. Segundo ele, “para o futuro deste país restará a perspectiva de incerteza sobre o futuro de suas instituições democráticas, tão bravamente conquistadas” Para Riccitelli, “desobedecer a Lei Maior significa o questionamento injustificável da validade das normas elaboradas, em complexo e específico processo legislativo, que têm por princípio, meio e fim, a fundamentação ética, política e social da existência de determinado Estado, qual seja: preservar o relevante interesse público, o bem-estar coletivo”.

Na opinião do advogado Fernando Eduardo Serec, o número de ações diretas de inconstitucionalidade é grande, particularmente na esfera federal. Porém, para ele, “o fato de existirem mecanismos que permitem proteger a Constituição Federal e as constituições estaduais, o fato de tais instrumentos estarem sendo utilizados e, mais que isto, que existem diversas decisões anulando leis, medidas provisórias, enfim atos atentatórios à Constituição, demonstra que há efetivamente respeito em nosso País aos princípios constitucionais”.

Critérios do levantamento A pesquisa do percentual de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) contra leis e normas federais aprovadas pelo Congresso e sancionadas pela Presidência da República, bem como os atos de tribunais e deliberações das assembléias legislativas e governadores cobriram o período de 16 anos de existência da atual Constituição.

Foram computadas as 3.315 ADIs levadas à apreciação do STF. Para o cálculo dos percentuais foram expurgadas as ações ainda não julgadas, muito embora algumas delas esperem há mais de quinze anos por um desfecho.

Mas, a partir da indicação dos próprios ministros, admitiu-se que o STF, por uma questão operacional, já ao julgar os indefectíveis pedidos de liminares, vem fazendo o exame de mérito do pedido. Ou seja, quando se constatou a suspensão liminar do trecho atacado da lei ou ato, o dado entrou na estatística como inconstitucional.

Já o arquivamento da ação por perda de objeto (quando a norma atacada não existe mais) por falta de legitimidade do impetrante (quando o autor não tem conexão com o pedido) entram no cálculo como redutor do índice de inconstitucionalidade. Ou seja: não foram descartados, ainda que o fato de não ter sido examinada a norma pudesse desqualificar o dado.

Nas situações em que o responsável pela norma inconstitucional revogou o ato quando ficou claro que perderia, a estatística não aceitou a mudança. Ou seja: em vez de lançar a informação na coluna de ações “prejudicadas”, ela foi mantida como “inconstitucional”, já que, enquanto existiu, a lei vigorou em desacordo com a Constituição.

Os elementos sobre a inconstitucionalidade de leis municipais paulistas foram obtidos junto à Procuradoria-Geral de Justiça. Os dados sobre os municípios mineiros foram obtidos através do site do TJ-MG.