A busca de uma nova Democracia: Paulo Bonavides ENTREVISTA A busca de uma nova Democracia

[26 Abril 01h41min 2005]

Morando há 22 anos em um sítio com vistas para a lagoa da Precabura, no bairro Lagoa Redonda, Paulo Bonavides é de uma simplicidade que cativa logo ao primeiro contato. Simplicidade digna dos grandes mestres, que têm a noção exata da importância do conhecimento e que só tem validade se puder ser compartilhado.

Em quase duas horas de conversa, flashes da infância difícil vivida em Patos na Paraíba e posteriormente em Fortaleza, a inclinação e o despertar para a política, bem como os êxitos precoces alcançados. Com uma memória prodigiosa, é capaz de relembrar detalhes, fatos, textos e nomes surgidos há mais de 50 anos.

O jurista respeitado internacionalmente também revela seu lado sentimental e o apego à família em situações que por duas vezes o fizeram renunciar a atividades que poderiam ter-lhe rendido mais prestígio e dinheiro. Hoje, a prova de que a opção foi correta. Uma dessas opções deu-se quando voltou ao Ceará após passar um ano na Alemanha, atendendo a ultimato de Yêda Sátiro, que viria a tornar-se sua esposa. No último mês de dezembro o casal, que teve sete filhos e 11 anos, completou 50 anos de casados.

Mas Bonavides também é duro nas avaliações sobre o Brasil. Para ele, o país atravessa uma crise institucional que teria o sistema presidencialista como causa. Adepto da democracia participativa, admite que sua maturação exige tempo, mesmo assim, não perde a esperança de algum dia vir a ser implantada no Brasil. Veja trechos da entrevista:

O POVO – Queria que o senhor começasse falando de sua infância?

PAULO BONAVIDES – Nasci em Patos, no estado da Paraiba, em 10 de maio de 1925, e aos 9 anos de idade incompletos viemos para o Ceará, onde estou até os dias presentes. A minha infância se passou na cidade de Patos. Freqüentei o primário com o professor Anésio Leão, um educador de grande destaque nos sertões da Paraíba. Em 34 já estava no Ceará e entrei no Liceu do Ceará.

O POVO – A vinda ao Ceará se deu por quê?

PAULO BONAVIDES – A raiz da minha transferência e de minha família primeiro foi a perda de meu pai em 1933. E também a vinda de um tio meu, que era do telégrafo, irmão de minha mãe – ela também ligada ao telégrafo , como meu pai, que chefiava a agência de patos. Em 34, meu tio, Sebastião Fernandes, foi removido por uma perseguição política em decorrência do fato de que ele estava em oposição ao domínio político da cidade. Era cunhado de um político na Paraíba, que na época era deputado estadual, o advogado Ernani Sátiro. O prefeito, inimigo pessoal de meu tio, para perseguí-lo, conseguiu a transferência dele – na época o órgão era subordinado ao Ministério da Viação. A transferência se deu, passou aqui 3 ou 4 meses e voltou a Patos, reconduzido, porque a situação política se modificou. Minha mãe resolveu ficar em Fortaleza. Meu pai, antes de morrer, já tinha a idéia de se transferir para Fortaleza porque ele queria ainda cursar Direito no Ceará. Então quando meu tio foi transferido, minha mãe pediu para acompanhá-lo. O ministro da Viação, José Américo Almeida, atendeu ao pedido e ela veio. Quando a situação se normaliza no governo da Paraíba minha não quis mais voltar. Ela, viúva, com cinco filhos, enfrentamos muitas dificuldades. O cargo dela era início de carreira nos correios, uma remuneração muito baixa. E ela enfrentou como uma verdadeira heroína essa situação.

O POVO – A criança Paulo Bonavides tinha noção das turbulências políticas que atingiam a família?

PAULO BONAVIDES – Tinha, tinha. Porque eu despertei para a política em 1930, aos 5 anos de idade. Curiosamente, estranhamente, e eu até procuro esquecer esse começo (risos). Por toda inocência política e amizade com outros meninos mais velhos, era época de efervescência política (a revolução de 30), a revolução liberal, e eu dizia, até irresponsavelmente, dentro da família que era toda liberal, que eu era contra eles. Você já imaginou? E lá em casa em fui muito censurado. E ainda me recordo bem. No dia que João Pessoa morreu eu disse: ‘morreu um grande inimigo de Washington Luis’ (risos).

O POVO – Dos irmãos o senhor era o que tinha essa visão política mais aguçada?

PAULO BONAVIDES – O mais velho era o Anibal (Bonavides). Já era aluno do Liceu da Paraíba quando foi trasferido para o Ceará. E ele também tinha uma percepção política, mesmo porque, muito cedo, fez parte de um grupo de estudantes em que estavam Otacílio Queiroz, Celso Furtado, Cleanto Paiva Leite, um grupo de esquerda já, e Hidelbrando Spíndola. Então meu irmão entrou nesse movimento, que era ligado ao marxismo.

O POVO – Qual era a diferença de idade do senhor para ele?

PAULO BONAVIDES – Sete anos.

O POVO – Mas o senhor chegou a manter contato através de Anibal com essas pessoas?

PAULO BONAVIDES – Não, não, porque era um grupo no âmbito acadêmico, liceais, em João Pessoa….Pois bem, chego aqui, e em 36 ganhei um prêmio do professor Luis Mendes (do Liceu do Ceará). Ele sorteu lá um tema, que seria falar sobre a China, e em razão disso ganhei um livro que falava sobre a história da civilização.

O POVO – E o que é que o senhor sabia sobre a China com 11 anos de idade?

PAULO BONAVIDES – (risos)….Eu não posso dizer que sabia muita coisa, mas escrevi uma redação sobre a China, muito ligeira, superficial, mas num estilo que agradou muito. E de todos que fizeram, a turma toda, eu fui escolhido e ganhei o prêmio. Foi o primeiro que eu ganhei. Em 38 eu leio, em janeiro, no jornal O POVO, um anúncio para repórter, na primeira página. Aí, quando eu me apresentei, o Paulo Sarasate, que era o redator-chefe, era meio temperamental, foi logo dizendo, ‘não, menino, não’.

O POVO – Mas em 38 o senhor tinha 13 anos..

PAULO BONAVIDES – Era, 13 anos. Eu estava no quarto ano do Liceu, no ano seguinte conclui.

O POVO – O senhor, então, já gostava de escrever?

PAULO BONAVIDES – Bem. Eu ganhara o concurso do Luis Mendes, e desde 36, eu acompanhava, lia religiosamente, todo o noticiário sobre a guerra civil espanhola. Eu torcia muito pelos republicanos, contra os nacionalistas. Você vê que já não era mais aquela criança conservadora de 30.

O POVO – As idéias de Anibal o influenciaram?

PAULO BONAVIDES – Ele me influenciava muito, mas eu achava as posições dele muito radicais. Ele não abria mão das idéias dele, eram muito enraizadas. E o curioso é que no grupo dele alguns amainavam as posições, mas o Anibal, não. ele até o fim o da vida manteve uma linha de congruência admirável. Mas eu não compartilhava devido ao radicalismo, e minhas posições se moviam na centro-esquerda. Mais para a esquerda do que para o centro. E eu acompanhava, como havia dito, os eventos da guerra civil espanhola.

O POVO – Esse interesse pela guerra civil foi isolado, ou o senhor tinha interlocutores para tratar sobre o assunto?

PAULO BONAVIDES – Não, ninguém. Totalmente isolado, talvez um ou outro estudante do Liceu, tinha interesse, mas muito superficial. Eu já trabalhava em 38, estava no O POVO, e podia acompanhar. De 38 em diante eu pude aconpanhar com mais precisão, porque os nossos jornais tinham noticiário sobre a guerra muito resumido e eu passei a ter acesso a outros jornais.

O POVO – Mas o senhor pulou a sua entrada no O POVO, como foi o concurso para repórter?

PAULO BONAVIDES – Tive acesso ao anúncio. Quando fui me inscrever, o Paulo Sarasate até pilheriu dizendo: ‘menino, isso aqui não é jardim de infância não!’ Mas o Demócrito (Demócrito Rocha, que era genro de Paulo Sarasate), interferiu e disse: ‘Paulo, deixa o menino fazer o concurso’. Não sei se era pilhéria, ou se de fato ele iria me inscrever. Ele deixou, eu fiz. Só havia de estudante secundarista eu, de calças curtas, o resto era tudo acadêmico de Direito. Era uma vaga, mas depois eles chamaram mais dois. E eu ganhei o concurso……

O POVO – E como o senhor foi comunicado?

PAULO BONAVIDES – Na hora ninguém se identificou. No dia seguinte, no anúncio do vencedor, Paulo Sarasate veio com o texto vencedor e informou. Quando eu vi era o meu. Ele tomou um susto (risos), mas me admitiu. E no dia seguinte me convidou para conversar com ele no colégio Lourenço Filho, que ele estava fundando com Filgueiras Lima. Aí me falou das condições de trabalho, que iria ganhar um passe para trafegar nos bondes, para entrar nos cinemas, etc…Eu achei admirável aquelas facilidades iniciais. O secretário geral era o doutor José Maria Othon Sidou, a quem eu levava as matérias policiais….

O POVO – O senhor se recorda como foi a primeira matéria?

PAULO BONAVIDES – Não me recordo, mas o meu dia era uma rotina de atropelamentos, suicídios, não havia problema em fazer. Era uma rotina de visitar delegacias e o IML, onde havia os médicos muito simpáticos à época, que eu ainda me recordo, como Hélio Abreu, Vulpiano Cavalcante, Ocelo Pinheiro, Turbay Barreira.

O POVO – Nessa época o senhor já mostrava inclinação para o Direito?

PAULO BONAVIDES – Não, a minha inclinação era a política. Quando eu cheguei a Fortaleza havia dois caminhos que eu imaginava seguir. Ou o Colégio Militar, ou a carreira civil. Mas eu verifiquei que não havia a menor possibilidade de seguir a carreira militar por causa da vista, eu tinha miopia, e ninguém entrava míope no Colégio Militar naquela época. Então eu nem cheguei a me inscrever….(risos)

O POVO – Como surge a Faculdade de Direito?

PAULO BONAVIDES – Desde que eu me interessei pela guerra civil espanhola, já pensava em seguir Direito. Quando terminei o Liceu, em 39, ingressei no pré-jurídico, excelente essa preparação. Aliás, uma das coisas absurdas, digamos assim, foi o cancelamento desses cursos. Eram dois anos antes da Faculdade, com um proveito enorme. Por que? porque estudei sociologia, filosofia, biologia, lógica, e isso dava uma formação muito boa, preparação humanística para a Faculdade de Direito. A realidade disso eu comprovei muito tempo depois quando comecei a lecionar na Faculdade de Direito, porque salvo os seminaristas, que tinham outra formação, os alunos que ingressavam nas cadeiras introdutórias sentiam dificuldades para acompanhar. Então em fiz dois anos na Faculdade, no terceiro ano eu tive que interromper, foi em 44, e segui para um ano de estudo na Faculdade de Harvard, nos Estados Unidos, como jornalista convidado, junto com outros jornalistas latino-americanos. Lá eu tive professores admiráveis, notáveis. Retornei, e como a Faculdade não admitia que eu continuasse de onde parei, me transferi para a Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, onde também tive grandes professores.

O POVO – Professor, há quem diga que esse seu retorno ao Brasil teria sido um divisor de águas em sua carreira, já que senhor passa a se dedicar mais aos estudos jurídicos

PAULO BONAVIDES – Mas paralelamente em continuei a exercer o jornalismo, já que nos três anos na Faculdade Nacional eu trabalhei na Associeted Press. Então não houve essa interrupção, mantive o jornalismo, juntamente com o estudo acadêmico. Terminei o curso em 48 e no dia 15 de janeiro estava embarcando de volta ao Ceará, no Ita do Sul, não era tomando o Ita do Norte (risos). E veja, eu tinha alternativas após a minha formatura. Minha mãe e minha irmã compareceram a minha formatura. Minha mãe, de idade avançada, fez um apelo para que voltasse ao Ceará, era um dos caminhos. O segundo caminho era ficar no Rio, onde tinha relações de amizade com dois excelentes amigos, que era o doutor Vitor do Espírito Santo, grande jornalista, que dirigia com Amorim Parga, a chamada Press Parga, e tinha junto um escritório de advocacia trabalhista. E um outro companheiro dele, era o doutor Bonfim Calheiros. E os dois abriam o escritório se eu decidisse ficar no Rio. A terceira alternativa era a Associeted Press que acenava com o birô latino-americano. Eu já tinha um nome conhecido em jornais latino-americanos. A proposta deles era ir para Nova york, e me entregariam essa coordenação. Era a melhor das propostas financeiras. Mas tomei a decisão que reputo afetiva, em função dos laços maternos. E todos lá no Rio diziam que era um grande retrocesso, você é um louco….Em 1952 surgiu uma grande oportunidade. Eu havia escrito uns artigos no O POVO. E esses artigos eu remeti, eu queria fazer um curso na Alemanha, para a Universidade de Heidelberg. Eu enviei então uma carta ao reitor daquela universidade que a passa ao filólogo romanista do seminário românico da universidade, que se chamava Harri Meier. Ele leu os meus trabalhos, fez uma carta, gostando, dizendo que minha correspondência coincidia com uma iniciativa que a universidade estava tomando, que era a criação de uma seção luso-brasileira. Então ele me proporcionava o seguinte: não poderia pagar a passagem, a universidade vivia momentos de dificuldade, mas que me pagaria honorários, e como contrapartida ministraria cursos de literatura e língua portuguesa.

O POVO – O senhor renuncia então ao lado sentimental materno?

PAULO BONAVIDES – É, mas eu passo um ano lá, e volto ao Ceará por causa de novas razões sentimentais. Eu já tinha aqui um namoro arraigado, com raízes, e claro, a minha futura esposa (Yêda Sátiro Bonavides, completaram 50 anos de casados em dezembro último) me fez quase um ultimato: ou voltava da Alemanha, ou….

O POVO – E isso pesou muito?

PAULO BONAVIDES – De certa forma pesou o lado afetivo. Não podia perder aquela que tinha escolhido para ser a minha esposa. E eu não tinha condição de mantê-la lá. Dava para eu me manter, mas não uma família.

O POVO – E o retorno ao Ceará?

PAULO BONAVIDES – De volta, a minha aspiração era ingressar no magistério superior. Nós tínhamos unicamente como célula da Universidade que estávamos tentando fundar no Ceará a Faculdade de Direito. Tive também participação, com o professor Martins Filho, nos primeiros passos para a fundar uma universidade. Tanto que a Universidade não ia ser federal, ia ser estadual, no governo do desembargador Faustino de Albuquerque. Eu havia recebido um convite para proferir uma conferência sobre a universidade no Brasil e nos Estados Unidos. Por que nos Estados Unidos? Porque eu havia escrito o livro Universidades da América, que foi premiado pela Academia Brasileira de Letras, em 1949. No dia em que ia proferir a conferência, marcada para o Instituto Brasil-Estados Unidos, ocorreu um grande tumulto estudantil e a polícia do desembargador Faustino reprimiu a manifestação. Não houve mais clima para a conferência. Ela foi suspensa, e o Martins Filho verificou que seria melhor que a universidade passasse a ser federal.

O POVO – Professor, e diante das várias mudanças de rumo na sua vida, a inclinação política surgida ainda cedo, teve que ser deixada de lado?

PAULO BONAVIDES – Na verdade, eu nunca fui militante político. Eu tive apenas um interregno político, do qual já me afastei, com o PPS, quando da candidatura do Ciro (Ciro Gomes) à presidência (1998), que nasceu lá no gabinete do Demócrito (Demócrito Dummar – presidente do O POVO), num encontro do Willis Guerra Filho, eu também presente, o Ciro e o Demócrito. Foi ali que se levantou a idéia dessa candidatura, partiu dali. Depois o Mangabeira Unger também se associou e foi plantada aquela semente.

O POVO – A idéia da candidatura de Ciro Gomes nasceu desse encontro?

PB – Foi. Nasceu no O POVO, dentro do O POVO. E eu me recordo bem, o Ciro Gomes relutava, em razão de se julgar um nome provincial, e não uma figura ainda nacional.

O POVO – E quem sustentou que ele poderia ter projeção nacional?

PAULO BONAVIDES – Esse pequeno grupo sustentou e depois a idéia se irradiou, e depois fizemos contato com Mangabeira Unger.

O POVO – Que perspectiva o senhor tinha que ele pudesse se tornar um nome nacional?

PAULO BONAVIDES – É porque o Ciro Gomes eu admirava, e o admiro muito, porque ele foi meu aluno na Faculdade de Direito no primeiro ano. E logo na primeira aula fez perguntas com acuidade, pertinentes, que me impressionaram. Vi que se tratava de um jovem muito inteligente e o convidei para monitor da minha disciplina de teoria do estado.

O POVO – Ele mantem contato com o senhor?

PAULO BONAVIDES – Não, ele sempre me trata com muita consideração intelectual, mas do ponto de vista político não há esse contato….

O POVO – Já que o senhor tocou nesse aspecto político, Mangabeira Unger, com o Partido Humanista Social (PHS), ressurge a cena nacional com um projeto quase visionário. Como o senhor vê essa postulação?

PAULO BONAVIDES – A meu ver, o quadro está vindo lá das profundezas políticas e sociais, um movimento que está se formando de absoluta insatisfação com os rumos que a esquerda governista, situacionista, está seguindo. E essa insatisfação, do meu ponto de vista, está produzindo uma aglutinação das forças mais descontentes com o que está acontecendo. A falta de correspondência entre a promessa eleitoral e a realidade que se produziu nesse governo, repetindo todo o governo antecedende, quando a proposta era por inteiro diferente. Era a ruptura com o quadro anterior, com a política traçada por Fernando Henrique, que por sua vez, seguia o que indicava o governo Collor.

O POVO – Como constitucionalista, o senhor acha que isso se deve a um agrupamento político simplesmente, que não consegue ser conseqüente, ou se trata de uma questão institucional?

PAULO BONAVIDES – Eu acho que a questão no Brasil é institucional. Eu reiteradamente tenho formulado a tese de que nós já nascemos imersos em uma crise constituinte e não em uma crise constitucional. Eu faço essa distinção, e isso é uma fórmula minha. Crise constituinte é uma crise das instituições. Crise constitucional é uma crise na constituição. É possível por via de uma emenda à constuição remover uma crise constitucional, mas é por inteiro impossível, por via de emenda ao texto constitucional, acabar com a crise constituinte. E essa é a nossa tragédia política. É que as ocasiões em que tivemos oportunidade de dar solução à crise das instituições nós não o fizemos. Talvez haja raízes nisso. A nação brasileira, a figura do estado brasileiro, já se fez em desencontro com a nação. Houve como que um divórcio no berço de nossa independência. Nós não fizemos uma revolução da independência. Não conheço na história das civilizações ocidentais o que se produziu no eixo Portugal-Brasil. Tivemos três poderes constituintes, que foram o das cortes de Lisboa, o do Imperador dom Pedro I e o da Assembléia Nacional Constituinte. Em outras palavras, nós não tivemos legitimidade na promulgação, porque foi outorgada a constituição imperial de 1824.

O POVO – O senhor tem teorizado sobre o fato da democracia representativa…..

PAULO BONAVIDES – Sim, está na raiz do processo. Fez-se uma carta outogarda, a legitimidade nasceu com uma grave lesão.

O POVO – Além desse aspecto histórico cultural, do ponto de vista prático, nós temos governos eleitos com ampla maioria de votos, mas que não conseguem aplicar seus programas, porque não têm maioria no parlamento. E isso tem gerado crises constantes. E Mangueira Unger vem agora sugerindo um movimento que já se mostrou inútil…

PAULO BONAVIDES – Esse movimento é bom, não porque resolva a crise do sistema presidencial, não resolve. Mas é excelente para debatermos em profundidade a necessidade de um novo quadro institucional para o País. Uma nova via, uma nova forma de governo. E eu acho que dentro do sistema presidencial representativo de governo nós não temos a chave da solução. De sorte, que eu confesso, não acredito no bom êxito, por mais boa fé, empenho e ardor que tenha o doutor Mangabeira Unger, ele não traz a solução para a crise política. Por que? Porque eu vejo como ponto de partida a adesão ao sistema presidencial de governo, e essa forma não se sustenta.

O POVO – Qual seria a saída?

PAULO BONAVIDES – Olhe, eu manifesto de uma parte otimismo e de outra pessismo. Otimismo, porque acho que o brasileiro merece formar a sua consciência de que esse caminho não nos conduz a nada, e a frustração será cada vez mais decepcionante. E a consciência que eu gostaria de cristalizar seria a necessidade de uma regeneração partidária por via de uma democracia participativa, que teria legitimidade para dar as grandes soluções institucionais quando problemas nacionais que afetassem a nação estivessem em jogo. O sistema presidencial de governo aprisiona e encarcera qualquer presidente. Em toda a história, o que é o sistema presidencial? É o golpe de estado, o estado de sítio, isso fazendo todo o percurso republicano. É a produção de formas novas de arbítrio. Essas formas novas, eu denomino, por exemplo, de ditadura constitucional, é um paradoxo. Mas é uma realidade. O que fez Fernando Henrique, o que está fazendo Lula, é a didatura constitucional. A emenda da reeleição, por exemplo, que contrariou toda nossa tradição republicana. O presidencialismo é a máquina do poder montada para a corrupção. Quer a eleitoral, na primeira república, quer a financeira, nas repúblicas subseqüentes. E mais, criou-se a figura do que eu chamo de golpe de estado constitucional, que é fazer a ditadura dentro dos moldes constitucionais, porque nós vemos que tudo está sendo feito agredindo a materialidade constitucional, mas conservando as aparências. Num manto de dissimulação, e isso é que é terrível, porque é a erosão da consciência do cidadão, faz o povo perder a crença na democracia.

O POVO – Mas se o congresso funciona de forma majoritária como fator de conservação, o senhor acha que a democracia participativa resolveria essa questão?

PAULO BONAVIDES – Eu acho que a democracia participativa é um processo longo. Não é para uma solução imediata. Temos que formar a democracia participativa não nas cúpulas. Não, digamos, na linha média, nem na linha superior da sociedade, mas partindo de baixo. No município, no bairro, na rua, no diálogo do cidadão com o cidadão, na formação da opinião pública. Mas eu acho também que o Presidente da República deveria ter escrúpulos e não tergiversar em denunciar à nação, digamos, as resistências que encontrasse por parte do legislativo, no sentido que o Congresso tem parte nesse desgoverno. Então também há uma cumplicidade do executivo com o legislativo, e o judiciário também nem se fala. Porque eu contesto a legitimidade do Supremo (Supremo Tribunal Federal) para dar solução a essa crise, porque ele mesmo vive sua crise de legitimidade na sua composição, quando os ministros são designados pelo presidente da República. Isso é um mal. Isso tem sido também fator de instabilidade, de dúvidas, desconfianças em relação ao Judiciário.

O POVO – Tudo então começaria com o município?

PAULO BONAVIDES – Exatamente. A célula política. Nós temos que trabalhar o laboratório dentro do município. Dentro da cidade nos bairros, dentro dos bairros nas ruas, enfim, nas escolas….

O POVO – Como o senhor vê essa proposta da atual prefeita Luizianne Lins de criar os conselhos populares?

PAULO BONAVIDES – Acho positivo, altamente positivo. Não tenho dúvida de que seria um grande passo. Você veja, o sistema partidário é tão falido, quanto o sistema representativo, não vejo mais como solução para a nossa crise.

O POVO – Diante disso, o senhor seria capaz de prognosticar o futuro do governo Lula?

PAULO BONAVIDES – A meu ver o governo Lula faltou com o compromisso de uma mudança de rumos e diretrizes dentro do âmbito interno, político econômico e social, com espaços muito largos de omissão dentro da parte social de seu governo, muito aquém das expectativas populares geradas. E mais, a necessidade de ter mudado os rumos da política econômica. Enquanto tivermos um Banco Central que coloca sua autoridade na parte crucial da política econômica, acima da parte social prometida em campanha pelo presidente Lula, nós teremos esse desvirtuamento do programa que foi proposto.

O POVO – Mas o senhor vê algum risco para a democracia diante das demandas populares?

PAULO BONAVIDES – De imediato, não. Porque o Brasil depois de viver 20 anos de ditadura, tem ainda a memória de que o seu destino deve ser o da democracia, e acredito quem em nossas raízes há forças que poderão nos reencaminhar na direção e chegarmos à solução do problema institucional brasileiro.

O POVO – Professor, para encerrar, aos 80 anos, quais seus próximos projetos?

PAULO BONAVIDES – Eu estou empenhado em um grande projeto de cooperação intelectual no meio jurídico latino-americano. Ao transcurso do centenário da Faculdade de Direito da UFC, tomei a iniciativa de fundar a Revista Latino-Americana de Estudos Constituciais. Essa revista já circulou em quatro números, e o seu quinto número vai circular em setembro, o sexto, em fevereiro de 2006. A revista teve uma estupenda repercussão internacional, não só na América Latina, mas também na Europa, já que tem correspondentes naquele continente. É veículo importante de intercâmbio, porque estávamos de certa forma apartados desses irmãos vizinhos. Estávamos de frente para a Europa e de costas para nossos vizinhos.