Sentenciado, Dirceu aparelha batalha jurídica

Ninguém melhor do que o próprio José Dirceu para traduzir a luta obstinada que o deputado e ex-todo-poderoso chefe da Casa Civil trava nas instâncias do Congresso e do Judiciário para salvar o mandato: “Sou realista mas trabalho”. Por realista, Dirceu quer dizer que tem consciência das poucas chances de escapar da cassação. Já teria sido sentenciado. A Câmara agora estaria tratando de formatar o processo. Com o trabalho, acredita na possibilidade de até salvar o pescoço, na hipótese de um erro jurídico grosseiro, mas, sobretudo, procura resgatar a biografia, convencer a militância do PT de que foi cassado não por ter roubado, mas pelo que representa para a esquerda, e escrever, com a gramática da crise, a pedagogia de uma nova ressurreição política.

Nesses três meses, pela primeira vez desde a primeira visita ao Conselho de Ética da Câmara – à época menos convencido que hoje da própria inocência -, Dirceu avalia ter atingido o objetivo central de sua defesa: sendo cassado, acredita que deixará a Câmara sem a mancha de político corrupto. Uma declaração do líder da minoria, deputado José Carlos Aleluia (PFL-BA), parece dar razão a Dirceu : “Tenho certeza de que Vossa Excelência não é um político negocista”. O que não quer dizer que Dirceu tenha convencido as pessoas pessoas de que é infundada a acusação de que construiu a maioria governista no Congresso à base da compra de deputados e de partidos políticos.

Prova disso o ex-ministro da Casa Civil teve durante um encontro, no Rio de Janeiro, com artistas e intelectuais. À certa altura, o cartunista Ziraldo cutucou Dirceu. Ele poderia sair dali rindo baixinho e dizendo para si mesmo: “Enganei até o Ziraldo”. Mas ele, Ziraldo, embora estivesse convencido de que o ex-deputado nada fizera em benefício pessoal, para o próprio bolso, também não acreditava no contrário. “Não acredito que o Delúbio (Soares, o ex-tesoureiro do PT que assumiu a responsabilidade pela distribuição do dinheiro do valerioduto) fez aquilo tudo sozinho”, arrematou, com ironia, provocando gargalhadas.

Não deixa de ser irônico, mas quem deu eixo para o discurso de defesa de José Dirceu foi o presidente do PFL, senador Jorge Bornhausen (SC), ao declarar que não estava triste com a crise, pois ela permitiria ao país se livrar “dessa raça” pelos próximos 30 anos. Para o Dirceu, ele será cassado pelo que representa para a esquerda e pelo que representou na trajetória que levou um operário, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao poder.

Dirceu pretende reivindicar na Justiça e nas instâncias do Congresso tudo o que considerar um direito seu. Das dez iniciativas já julgadas, ganhou quatro e perdeu seis (veja quadro ao lado). Batalha jurídica que não pretende encerrar com a votação da cassação do mandato pelo plenário da Câmara dos Deputados.

Há uma variante que pode levar Dirceu a manter os direitos políticos: o Supremo Tribunal Federal (STF) considerar que o processo todo deve ser reiniciado, por não ter passado pela Mesa Diretora da Câmara. Neste caso, seria aberta a possibilidade de ele renunciar ao mandato antes de uma nova representação ser apresentada. Em agosto, Lula não chegou a pedir a renúncia, mas disse: “Zé, você não pode ficar oito anos sem mandato”. Àquela Altura, “Zé” achava que a renúncia seria a morte política.

Dirceu já prepara seu destino pós-cassação. Planeja sumir por dez dias depois de terminado o processo. Deverá levar as filhas para algum lugar onde poderá ter tranqüilidade para descansar e pensar no futuro. Voltará a Brasília em seguida, para organizar a vida. De imediato, vai procurar trabalho, uma fonte de renda que lhe dê sustentação para manter-se na política. Deverá procurar um escritório de advocacia atrás de emprego, certo de que ainda tem influência e prestígio. Ou fazer palestras. Em seguida, fará nova viagem. Por dois ou três meses, ficará de férias. Tem convites de amigos da esquerda internacional para ir à Europa, América Latina e até para os Estados Unidos, de onde recebe convites do Partido Republicano.

A convicção de que continuará na vida política vem da certeza de que sua defesa já convenceu parte de sua base política e de alguma parcela de intelectuais da esquerda brasileira de que é objeto de um julgamento político. Cerca de 100 artistas e intelectuais assinaram um manifesto em sua defesa. Vê nesses dois setores a sustentabilidade para manter-se ativo politicamente.

Não pensa em dirigir o PT novamente. “O tempo do Zé Dirceu na direção do partido acabou”, costuma dizer o próprio deputado às pessoas mais próximas. Mas pretende assumir a linha de frente da defesa de Lula, se a oposição tentar o impeachment do presidente da República. Acredita que ninguém no Palácio do Planalto tem a memória dos fatos como ele. E mais: ninguém, além dele, teria capacidade operativa para livrar o governo da queda.

Se tem convicção de manter ainda apoio político de parte da militância, Dirceu não deve ter tanta liberdade junto aos deputados e à cúpula do partido. Desde a fundação do PT, em 1980, Dirceu nunca esteve tão longe do poder partidário. “Dirceu não terá mais nada. Nem influência sobre o Campo Majoritário”, diz um influente parlamentar petista, ao referir-se ao grupo que comanda a legenda.

Embora seja pouco provável que um político que deixou o Congresso pela porta dos fundos possa exercer algum tipo de influência no futuro próximo, Dirceu parece convencido de que ainda tem um papel a cumprir. O governo quer distância dele, mas eventualmente ainda o procura em momentos agudos da crise. Depois da publicação da reportagem sobre o suposto envio de dinheiro de Cuba para a campanha de Lula pela revista ‘Veja’, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, entrou em contato com Dirceu. O ex-ministro deu alguns conselhos sobre a melhor maneira para Palocci tentar espantar a crise.

Na visão do ex-ministro, sua queda, em vez de ajudar o governo, como se acredita no Palácio do Planalto, pode piorar a situação: sem a luta obstinada do ex-ministro para manter o cargo, não haverá outro alvo dentro da crise a não ser o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, contra o qual haveria mais provas e indícios nas CPIs do que contra ele próprio.