Olhar Jurídico de Jorge Hélio

Como é do conhecimento geral, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), novo órgão de “controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes” – conforme dispõe a nova redação do art. 103-B, § 4º, da Constituição Federal, dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004 – editou a Resolução nº 07, de 18 de outubro de 2005, proibindo a prática de nepotismo em todos os órgãos do Poder Judiciário e declarando “nulos os atos assim caracterizados” (art. 1º da Resolução nº 07/05).

Resolução com igual teor, mas com prazo de 60 (sessenta) dias, foi aprovada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em sessão plenária realizada em Belo Horizonte, no último dia 7 de novembro – conforme pode ser constatado no site www.cnmp.gov.br. A proibição do nepotismo foi estendida, assim, aos membros do Ministério Público da União, que compreende o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Militar e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, e dos Ministérios Públicos estaduais.

A Resolução do CNJ foi publicada na Imprensa Oficial no último dia 14 de novembro, tendo início a contagem do prazo de 90 (noventa) dias para os presidentes de todos os tribunais judiciários do País promoverem a exoneração dos atuais ocupantes de cargos de provimento em comissão e de funções gratificadas nas situações previstas no art. 2º da Resolução. Em tempo: a Resolução não atinge, a priori, os tribunais de contas, por estes serem vinculados ao Poder Legislativo e não ao Poder Judiciário –
Determina o dito art. 2º, literalmente:

“Art. 2º. Constituem práticas de nepotismo, dentre outras:

I – o exercício de cargo de proveimrto em comissão ou de função gratificada, no âmbito da jurisdição de cada Tribunal ou Juízo, por cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados;

II – o exercício, em Tribunais ou Juízos diversos, de cargos de provimento em comissão, ou de funções gratificadas, por cônjuges, companheiros ou parentes, em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, de dois ou mais magistrados, ou de servidores investidos em cargos de direção ou de assessoramento, em circunstâncias que caracterizem ajuste para burlar a regra do inciso anterior mediante reciprocidade nas nomeações ou designações;

III – o exercício de cargo de provimento em comissão ou de função gratificada, no âmbito da jurisdição de cada Tribunal ou Juízo, por cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, de qualquer servidor investido em cargo de direção ou assessoramento;

IV – a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, dos respectivois membros ou juízes vinculados, bem como de qualquer servidor investido em cargo de direção ou assessoramento;

V – a contratação, em casos excepcionais de dispensa ou inexigibilidade de licitação, de pessoa jurídica da qual sejam sócios cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, dos respectivois membros ou juízes vinculados, ou servidor investido em cargo de direção ou assessoramento.

§ 1º Ficam excepcionadas, nas hipóteses dos incisos I, II e III deste artigo, as nomeações ou designações de servidores ocupantes de cargo de provimento efetivo das carreiras judiciárias, admitidos por concurso público, observada a compatibilidade do grau de escolaridade do cargo de origem. A qualificação profissional do servidor e a complexidade inerente ao cargo em comissão a ser exercido, vedada, em qualquer caso, a nomeação ou designação para servir subordinado ao magistrado ou servidor determinante da incompatibilidade.

§ 2º A vedação constante do inciso IV deste artigo não se aplica quando a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público houver sido precedida de regular processo seletivo, em cumprimento de preceito legal”.

1. As reações favoráveis e contrárias à Resolução nº 07 do CNJ

Uma das características do Estado Democrático de Direito é a livre e plural manifestação das mais controvertidas idéias, dos mais distintos interesses, desde que nos limites constitucionais e legais, sob pena da atuação coercitiva dos Poderes Públicos, observado o rol de competência de cada ente que os constitui.

Não se pode falar de mudanças estruturais sem imaginar enfrentamentos entre a “velha ordem” e os “novos rumos”. Aqueles que se valeram, durante anos – no caso presente, por séculos –, de práticas que nova norma venha a revogar, certamente se valerão dos paradigmas tradicionais para evitar as transformações supostamente apregoadas ou determinadas. A materialidade, aqui, sempre receberá a oposição consistente e organizada da formalidade. Impõe-se, então, uma correlação de forças jurídicas, mas de fundo político.

A Resolução de que ora se trata tem provocado intensos debates, seja entre os operadores do Direito, seja entre os componentes dos diversos segmentos do Poder Judiciário brasileiro, sem embargo do envolvimento de setores sociais organizados na discussão do tema, de grande relevância para toda a sociedade. A imprensa tem dedicado generosos espaços para a discussão sobre o assunto, nem sempre conduzido com a amplitude necessária, a imparcialidade desejada e o essencial contraditório de opiniões que um tema dessa natureza desperta e provoca.

É certo que a problemática do nepotismo é, antes, conseqüência, de um modelo histórico de Estado que serve a certas elites e, “se sobrar tempo”, atenderá aos reclames das maiorias desassistidas. Mesmo assim, de forma assistencialista e eleitoreira, populista e excludente. O nepotismo é uma mácula numa estrutura prenhe de fissuras. Nem por isso, deve-se deixar de lado a discussão sobre o temário.

Convém, contudo, registrar que tal medida – o combate ao nepotismo no seio do Judiciário – deve compor um conjunto de ações que vise a restruturar o Estado brasileiro, conduzindo-o a atender aos ditames básicos que sua Constituição estabelece e impõe.

Em nota conjunta, que foi lida pelo Presidente da OAB nacional, Roberto Busato, durante a sessão do CNJ de 8 de novembro passado, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil atestam que “além de ferir fundamentos básicos do ideário republicano, o nepotismo desacredita as instituições do Estado perante a sociedade, desservindo a ambas. É uma irregularidade que precisa ser evitada e extirpada de vez da vida pública do país”.

Segundo publicado no sítio eletrônico do CNJ (www.cnj.gov.br), a nota ressalta que as resoluções do CNJ e do CNMP “constituem providências eficazes, de natureza preventiva e repressiva, que merecem o irrestrito apoio das instituições e da sociedade civil, não merecendo crédito quaisquer reações anacrônicas oriundas de alguns segmentos conservadores que ainda insistem em manter os olhos somente voltados para o passado”.

Na contramão, o Estado do Rio Grande do Norte, sob o argumento de preservar direitos adquiridos, vem de aprovar lei estadual proibindo o nepotismo doravante, fazendo cumprir as determinações da Resolução do CNJ, mas resguardados os direitos daqueles que já se encontravam nas situações condenadas pela norma do Conselho. Na prática, a lei estadual potiguar preserva a “imoralidade histórica” e proíbe “imoralidades futuras”. Difícil de crer, impossível aceitar!

A maior resistência às medidas constantes da Resolução nº 07/05-CNJ tem partido, de forma organizada e aberta, dos tribunais de justiça estaduais. Na semana passada, entre os dias 8 e 11, o Colégio de Corregedores-Gerais da Justiça do Brasil, composto pelos corregedores-gerais dos tribunais de justiça estaduais, realizou seu 40º encontro em Maceió, Alagoas. No dia 11 de novembro, ao final do conclave, foi aprovada, por unanimidade, e publicada a “Carta de Maceió”, com as seguintes deliberações:

1. REPUDIAR a forma de atuação do Conselho Nacional de Justiça que, violando princípios da Constituição Federal, impõe procedimentos que cerceiam o autogoverno dos Tribunais de Justiça do Brasil e usurpam as atribuições do Poder Legislativo.

2. CONDENAR a prática do nepotismo nos três Poderes da República, que deve ser coibida por norma editada pelo Congresso Nacional.

3. SUGERIR aos Tribunais de Justiça que, sem perderem de vista os princípios norteadores de suas ações, resistam ao cumprimento de determinações do Conselho Nacional de Justiça que impliquem o desrespeito à Constituição da República e às demais normas válidas do sistema jurídico.

4. PONTIFICAR que a adoção desta postura decorre da possibilidade de transformação do Conselho Nacional de Justiça em órgão típico de regime de exceção, atentando contra o Estado Democrático de Direito e os direitos fundamentais da cidadania.

Como se nota, foi veemente a reação das cúpulas dos TJs, o que pode servir de indicativo de que a Resolução nº 07/05-CNJ será, brevemente submetido ao controle de constitucionalidade perante o STF, que, aí sim, definirá a questão.
Outro argumento, de certa monta plausível, que se sustenta contra a Resolução diz respeito à possibilidade – concretizada em várias situações – de servidores, eivados da condição condenada pelo CNJ, estarem cumprindo a contento as atribuições que lhes são deferidas, além de respaldados por tempo de serviço e capacidade técnica reconhecida e, de uma hora para outra, serem exonerados dos cargos ocupados. Será uma boa medida para o serviço público, já que outro servidor terá que ser nomeado para o mesmo posto, possivelmente sem as mesmas habilidades do servidor antigo?

Não sendo parente ou com qualquer vinculação referida na Resolução, o novo servidor não continuará exercendo um cargo de confiança? De onde virá esse novo servidor?

Além disso, o art. 3º da Resolução parece exagerar na dose, ao determinar que “São vedadas a contratação e a manutenção de contrato de prestação de serviço com empresa que tenha entre seus empregados cônjuges, companheiros ou parentes em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, de ocupantes de cargos de direção e de assessoramento, de membros ou juízes vinculados ao respectivo Tribunal contratante”.

2. O que ofende o princípio da isonomia, a Resolução nº 07/05-CNJ ou a prática ilimitada de empreguismo à parentada dos magistrados?

O nepotismo é um grande mal no serviço público, disso não há dúvidas. Ofende o princípio da isonomia, pois somente poderão ter acesso aos cargos de confiança – e eles são em boa leva no Poder Judiciário – os afilhados dos ocupantes de cargos de mando, não raro seus parentes. Agride o princípio da impessoalidade, pois feudaliza as relações do Poder Público, na prática privatizando-as. Atenta contra o princípio da moralidade, pelo qual o zelo no trato com a coisa pública prioriza o interesse público primário, que o interesse social. E, lógico, dificulta – quando não impede totalmente – qualquer controle externo ou interno dos órgãos ou entes contaminados pelo vício nepótico. Tende a inviabilizar o exercício do princípio da eficiência, pois a celeridade e a agilidade necessárias para a condução das atividades de natureza pública podem ser submetidas a interesses contrários àqueles defendidos pelo grupo familiar poderoso e, assim, deixar-se de realizar o fim proposto pelo ente público.

Indiscutivelmente, contudo, é impossível a eliminação do nepotismo enquanto perdurarem gamas enormes de cargos em comissão ao dispor dos gestores-mores. Só se combateria eficazmente a causa desse problema se se convertessem os ditos cargos – ou, pelo menos, a maioria deles – em cargos preenchidos mediante a aprovação em concurso público, de provas ou de provas e títulos, como manda o art. 37, II, da Constituição Federal.

Talvez coubesse afirmar, em nome do princípio da razoabilidade, que há medidas de nepotismo toleráveis – como, por exemplo, a nomeação de cônjuge ou parente para o cargo de secretário particular, de chefe de gabinete, de assessor direto, ou, excepcionalmente, para outro cargo relevante, respeitadas rigorosamente a habilitação para o exercício dos cargos. Talvez fosse tolerável, apenas para ilustrar o raciocínio, o presidente de dado Tribunal nomear seu irmão, sendo este notável jurista, para seu assessor técnico.

As opiniões contrárias à Resolução nº 07/05-CNJ, além daqueles que têm interesses pessoais, grupais ou familiares feridos, atacam desde a formalidade de o CNJ ter supostamente legislado, atuando – como diz a “Carta de Maceió – como verdadeiro tribunal de exceção, o que é vedado pela Constituição Federal, até o excessivo rigorismo do teor da Resolução, verticalmente imposta, sem prévia discussão do tema com os envolvidos e segmentos da sociedade civil.

Há, também, os que ainda sustentam a inconstitucionalidade do Conselho Nacional de Justiça, querela que o STF já resolveu, decidindo por sua constitucionalidade.

3. O que poderá ocorrer, no caso de órgãos judiciários descumprirem a Resolução?

A esta questão pragmática sucedem duas opções: 1ª. Ser impugnada, perante o STF, a Resolução, no todo ou em parte, por meio de ação direta de inconstitucionalidade, proponível por qualquer dos entes ou órgãos listados no art. 103 da Carta Política Maior. Nessa hipótese, o STF decidiria sobre a situação jurídica da Resolução do CNJ, declarando-a constitucional ou inconstitucional e determinando os efeitos da decisão – se retroativos a sua edição (ex tunc) ou somente após a decisão (ex nunc), atingindo a todos (efeitos erga omnes) e vinculando todos os demais órgãos do Judiciário a aplicar da mesma maneira a norma. A impugnação da citada norma também pode dar-se pelo chamado controle difuso, como, por exemplo, pela via do mandado de segurança, que, caso fosse concedido, atenderia apenas aos interesses dos impetrantes; 2ª. O STF, notificado sobre a recusa de tribunal(is) estadual(is) de cumprir o teor da Resolução, requisitaria ao Presidente da República a intervenção nos Estados-membros respectivos ou no Distrito Federal, com base nos artigos 34, VI, e 36, II, da Lei

Fundamental da República. Caso a recusa partisse de tribunais federais, necessário se faria outro procedimento: processo perante o STF ou STJ, dependendo de qual seja o tribunal “desobediente”, para responsabilizar os respectivos membros, em especial os presidentes.

O Conselho Nacional de Justiça editou essa Resolução, com base no art. 103-B, § 4º, I e II, da Constituição Federal. Em tese, tem competência para fazer o que fez. Alguns arredondamentos terão que ser feitos. O STF, provocado, certamente, os fará. Não se pode desqualificar a “bombástica” norma, por alguns pecados nela contidos. Ao contrário. Trata-se de ato a ser seguido pelos demais Poderes.

A propósito, o art. 37 da Constituição Federal, quando dispõe sobre os princípios que regem a Administração Pública – legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência, além de vários preceitos constantes dos vinte e dois incisos que o compõem -, menciona expressamente “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. Portanto, não é “privilégio” do Poder Judiciário servir a esses princípios democráticos e justos. É dever, também, do Poder Legislativo – incluídos os tribunais de contas – e do Poder Executivo, e seus entes e órgãos da administração direta e indireta – nesta incluem-se as empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações públicas e autarquias.