No fio da navalha O procurador da República no Ceará Edmac Lima Trigueiro afirma que se viu ”obrigado” a dar parecer contrário à progressão de regime do traficante Waleed Issa Khmayis. Para ele 9 anos nas ”cadeias infectas” do Ceará (e Brasil) acabam com a vida de qualquer ser humano
Demitri Túlio
da Redação
Assunto delicado, entrevista mais ainda. Depois de um encontro na sede da Procuradoria da República em Fortaleza, no dia 28 de outubro último, o procurador Edmac Lima Trigueiro só concordou em responder às perguntas referentes ao caso do jordaniano Waleed Khmayis por escrito. Sugestão do repórter diante do pedido do representante do Ministério Público Federal em não gravar entrevista nem ser fotografado.
Dias depois, como combinado, Edmac Trigueiro enviou, por e-mail, respostas às 17 indagações sobre a polêmica concessão da soltura do condenado Waleed. Ele, que foi condenado por tráfico de cocaína em 1992 em Fortaleza, fugiu durante regime semi-aberto em 1996 em São Paulo e, oito anos depois da fuga, foi flagrado com documentação falsa no Rio Grande do Sul. Ainda assim, foi beneficiado pela progressão de regime aberto (liberdade acompanhada). Decisão do juiz Augustino Lima Chaves, da 12ª Vara Federal no Ceará, confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Edmac Trigueiro revelou, dentre outras questões, que o Ministério Público Federal no Ceará não fiscaliza, por exemplo, a situação da saúde de presos ”federais” confinados nos presídios do Estado ou da Polícia Federal. Fato que o impediu de informar se a concessão de benefícios a Waleed é única no Ceará. Confira principais trechos da entrevista:
O POVO – Por que o senhor foi contrário à progressão do regime do preso Waleed Issa Khmayis?
Edmac Lima Trigueiro – Por razões puramente técnicas. Em geral o Supremo Tribunal Federal (STF) tem adotado uma posição contrária à progressão de regime para o caso de tráfico de drogas. Mas há muita discussão na doutrina sobre este assunto. O próprio STF está em vias de reanalisar essa questão e pode até rever seu posicionamento. Eu, particularmente, não acho que seja de boa política criminal se adotarem regras fechadas, únicas, como essa de se proibir a progressão e pronto. Acho que os casos penais são sempre muito sensíveis e exigem uma resposta particular e individual em cada caso concreto. Por isso acho que deva essa decisão (de conceder ou não a progressão de regime) ficar a cargo do juiz da execução, com possibilidade de recurso, óbvio, para aqueles que se sentirem prejudicados com a decisão do juiz.
OP– O senhor não deu a progressão, especificamente, por quê? Waleed Issa tinha uma fuga em São Paulo, quando estava no Carandiru, e depois foi preso no Rio Grande do Sul por documentação falsa e acusado de lavagem de dinheiro e contrabando de armas.
Edmac – Na verdade, não foi bem assim. Quando dei parecer neste processo (19/12/2004), o réu já havia passado perto de quatro anos na cadeia, em regime fechado, em diversos locais. No Carandiru passou pouco mais de nove meses. Quanto à lavagem e ao contrabando, o que disse, em meu parecer, é que ele foi preso no Rio Grande do Sul por uso de identidade falsificada e respondia a inquérito por porte de arma e lavagem de dinheiro. As razões específicas, portanto, estão aí: o descumprimento do regime anterior e o cometimento de novo delito.
OP – Foi levado em consideração o fato de o jordaniano ser um preso procurado da Justiça italiana por homicídio e por tráfico de drogas?
Edmac – Na verdade, o jordaniano não é um preso da Justiça Italiana. Ele é um preso da Justiça Brasileira. Em meu parecer, pedi ao juiz que oficiasse ao STF para enviar as informações do processo de extradição. Estamos aguardando essas informações. Ao que eu saiba, presentemente, não há mais interesse da Itália em sua extradição.
OP – Baseado no processo, esse preso é considerado perigoso? Por quê?
Edmac – Vou te responder com toda sinceridade. Não dá para saber! Deixa eu te dizer uma coisa. Sei que minha mãe, minha mulher, meu pai, não são pessoas perigosas. Sei disso porque convivo com eles. Nunca vi esse jordaniano. Não o conheço. Não tem como eu saber se ele é ou não perigoso. Para mim, lendo o processo, não posso chegar a essa conclusão.
OP – Na opinião do senhor, houve algum benefício a esse preso, na liberação dele?
Edmac – Olha, é preciso entender, em primeiro lugar, que a pena desse homem foi muito dura. Ele foi condenado a nove anos de reclusão. Isso é muito tempo. Nove anos nessas nossas cadeias infectas acabam com a vida de qualquer ser humano. Isso fere a dignidade da pessoa humana, valor supremo de nossa Constituição, direito fundamental de todo homem. E o jurista dos tempos modernos deve estar atento para isso. Portanto, no plano da Justiça material, acho que ele já pagou seus pecados, já expiou suas culpas, embora, no plano do processo, numa análise estritamente técnica, tenha me visto obrigado a dar parecer contrário a suas pretensões.
OP – Em que estágio está este processo no Ministério Público?
Edmac – Houve recurso da decisão que concedeu a progressão. Serão apresentadas as razões deste recurso para ele poder subir para o Tribunal.
OP – Tendo em vista que esse preso foi considerado perigoso pela Polícia Federal, com possíveis ligações com a Máfia Italiana e o tráfico internacional de drogas, o argumento de ser pai de três filhos menores e ter um problema cardíaco são fatores suficientes para se decretar a progressão de regime?
Edmac – Olha, em primeiro lugar, na decisão em que se concedeu a progressão há outras razões, de ordem técnica-processual. Como disse no início, a discussão acerca da progressão de regime em crimes considerados hediondos e tráfico de drogas é polêmica. Você viu minha opinião pessoal de que isso tem de ficar para cada juiz decidir no caso concreto, sopesando vários fatores. Neste processo, por exemplo, o próprio STF concedeu ao réu Waleed a progressão para o semi-aberto. Veja que curioso! Aí houve aquele problema da evasão ou fuga. Se não tivesse havido isso, tenho para mim que ele hoje já estaria em liberdade. Quanto aos problemas de saúde do réu, tenho para mim que o juiz acertou. Não se está julgando um bicho (e mesmo que o fosse!). Está se lidando com seres humanos, que têm que trabalhar para sustentar suas famílias, têm que conviver com seus filhos, têm de cuidar, sim, de seus problemas de saúde. O problema da Justiça é um problema de consciência. O juiz tem que ser sensível mesmo, conhecer os problemas que envolvem a alma humana, saber como as coisas se passam, enfim, entender da vida. Só quem entende da vida pode compreender e julgar bem a vida de seu semelhante. Não há nada fácil na Justiça. Julgar e decidir não é fácil. Os processos são complicados. Há a versão da polícia, a versão do Ministério Público, a versão da defesa, a versão do juiz. Você me pergunta onde está a verdade? Muitas vezes um pouco com cada um.
OP – O senhor já havia trabalhado em caso semelhante?
Edmac – Trabalho com processos penais há 12 anos. Pelas minhas mãos já passaram muitos casos. É sempre um drama muito grande decidir por essa ou aquela posição. Preocupo-me muito em não cometer injustiças, embora saiba que devo tê-las cometido. Nem sempre acertamos, é difícil evitá-las.
OP – Em relação ao recurso do MPF, qual é a base da oposição feita pela Procuradoria? É meramente técnica, legalista e burocrática ou o senhor tem dúvidas? O preso não deveria ter tido direito à progressão de regime?
Edmac – Didaticamente, há duas etapas no recurso. O recurso é interposto, quer dizer, é apresentado ao juiz. Isso significa que o recorrente não se satisfez com a decisão do juiz e quer recorrer à instância superior, ao Tribunal. Uma vez admitido, ou seja, recebido o recurso pelo juiz, este deve intimar o recorrente para apresentar as razões do recurso. As razões do recurso são os motivos, os fundamentos, que o recorrente apresenta para que consiga do Tribunal a reforma da decisão. Pois bem, então vamos ao caso Waleed. Nele, já foi interposto o recurso. O nome desse recurso é Agravo em Execução. Nele, se pediu para se tirarem cópias de determinadas peças do processo (o processo, atualmente, conta com nove volumes e 3.961 páginas) para que subisse ao Tribunal apenas o recurso acompanhado das peças fotocopiadas. O nome disto é subir por instrumento. Isso significa que o que sobe ao Tribunal é o recurso, permanecendo os autos do processo na primeira instância. No caso do Waleed, estou aguardando o cumprimento dessas providências (chamadas de processamento do recurso) para poder apresentar as razões do recurso. As razões do recurso ainda não foram apresentadas. Portanto, não posso adiantar qual será sua fundamentação. Se houve recurso é porque, sob a ótica do recorrente, o preso não tinha direito à progressão.
OP – Burocraticamente, quais são as etapas a partir da decisão do juiz federal?
Edmac – Com o esclarecimento que fiz antes, acho que está respondido. Cabe apenas mais um esclarecimento. O STF não participa, de forma alguma, dessa relação jurídico-processual. Portanto, não há recurso interposto para o STF. O recurso será apreciado e julgado pelo TRF em Recife. Faço uma previsão de seis meses para o julgamento desse recurso, mas não há um prazo determinado. Pode ser mais, pode ser menos, depende do Tribunal.
OP – O que o senhor pede na verdade é a anulação do que decidiu o juiz e a volta do preso para o presídio?
Edmac – Como disse acima, ainda não chegamos a essa etapa. Portanto, ainda não pedi. O que ocorreu neste processo é que, antes do juiz decidir sobre a progressão, pediu que o MPF se manifestasse. E eu opinei, como disse antes, pelo indeferimento do pedido da defesa. O juiz, após um período, decidiu de forma contrária ao meu parecer. Aí houve recurso dessa decisão. Falta apresentar as razões do recurso.
OP – O senhor fala que Waleed Issa não é um ”bicho” e que por ter sido recluso nas ”infectas” cadeias cearenses (paulista e gaúcha) merecia a progressão por ter que sustentar três filhos, ter problemas cardíacos e outros fatores. Pergunto: o MPF, que não precisa ser provocado, já realizou algum levantamento para saber quantos presos condenados pela Justiça Federal no Ceará encontram-se em situação semelhante?
Edmac – Se você voltar e ler atentamente a resposta que dei anteriormente vai ver que lá eu disse que há outras razões, de ordem técnica-processual, para sustentar a decisão que concedeu a progressão do regime. Disse também que, neste caso específico do Waleed, quem, inicialmente, concedeu a progressão, não foi o juiz daqui e sim o próprio STF. E a decisão do STF em conceder a progressão de regime ao Waleed não foi questionada. Também disse que não se estava julgando um ”bicho”. Aliás, toda pessoa deve ser tratada com dignidade, como manda a Constituição Federal. Disse ainda que achava correto devesse o juiz considerar os problemas de saúde do réu. Essa é a função do juiz da execução criminal. Estar atento para os problemas específicos de cada preso. Quanto à preocupação do MPF com relação aos presos, no dia 26 de outubro deste ano, fizemos uma reunião entre todos os procuradores da República integrantes do Núcleo Criminal da Procuradoria da República no Ceará e decidimos, por unanimidade, que a cada dois meses será feita uma inspeção na Polícia Federal por dois procuradores da República, acompanhados de um médico de fora da polícia, onde será verificada, entre outras coisas, a situação dos presos da Justiça Federal. Quanto aos presos que estão nos presídios estaduais, decidimos que esse trabalho será feito pelo procurador que atua junto ao Conselho Penitenciário Estadual.
OP – Se foi feita a investigação pelo MPF, quantos receberam o benefício da progressão de regime (a exemplo de Waleed) a partir da investigação realizada pela Procuradoria?
Edmac – Normalmente, os presos que conseguem a progressão de regime, conseguem-no através do trabalho de seus advogados, ou dos defensores nomeados pelo juiz ou de defensores públicos (no caso de não poderem arcar com as despesas de advogado). Portanto, o mister de postular a progressão de regime é encargo da defesa. Mas, mesmo sem uma reflexão mais profunda sobre essa temática, atrevo-me a concordar com você. O Ministério Público, numa visão, digamos, mais progressista e moderna, poderia postular diretamente ao juiz a progressão do regime em nome do preso, ou, pelo menos, poderia provocar a defesa a fazê-lo, o que seria mais apropriado, entendo.
OP – E sobre outros presos estrangeiros condenados por tráfico de drogas ou outros crimes que estão doentes (Aids, doenças do coração, tuberculose, patologias comuns entre presidiários), longe de suas famílias e de seus países e que não têm dinheiro para pagar advogados. O MPF já verificou quantos necessitam da assistência da Procuradoria para solicitar progressão de regime junto à Justiça Federal ou, no mínimo, um tratamento médico?
Edmac – Você tocou num problema muito sensível. Problema secular, mas muito atual. A situação dos presidiários. As condições das penitenciárias brasileiras. A superlotação, as doenças. Esse é um problema que cinco séculos não foram suficientes para resolver. Entendo que o Ministério Público Federal tem procurado, na medida de suas possibilidades, enfrentar essa questão. Quando atuei em Minas, por exemplo, pedimos à Justiça Federal que fechasse a carceragem da Polícia Federal justamente por não ter condições de oferecer dignidade aos presos. Fomos atendidos num primeiro momento. É uma medida extrema? É. E provoca muita polêmica. A sociedade fica dividida. E fica dividida porque sabe que fechar uma cadeia não resolve o problema dos presos. Eles terão que ser ”alojados” em outra. O Ministério Público, enfim, preocupa-se com a situação carcerária brasileira.
OP – Em caso de não ter sido realizado o levantamento das condições dos presidiários condenados pela Justiça Federal, não se trata de uma omissão da PGR?
Edmac – De forma alguma. A Procuradoria da República no Ceará não é omissa. Não deve ser nunca. Como dizia Goethe, ”tudo, menos a inércia, o mal dos males, o que mais vexa a dignidade humana”.
O POVO solicitou entrevista com o ministro Carlos Velloso, do Supremo Tribunal Federal (STF), que foi o relator do processo de extradição de Waleed Khmayis. Quer saber quantos casos de progressão de regime foram concedidads pelo Supremo a presos que quebram o regime a exemplo do jordaniano. A secretária, que se identificou como Ana, disse que consultaria a agenda de Velloso, prometeu dar uma resposta, mas até fim desta edição não retornou a ligação.