Guerra ao dinheiro sujo

O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Gilson Dipp, que atuou na criação das Varas Federais especializadas no combate à lavagem de dinheiro no Brasil, admite que o País tem vários fatores que criam facilidade para este tipo de crime

O Brasil hoje está diante de um desafio: virar referência mundial na guerra contra a lavagem de dinheiro e crimes contra o sistema financeiro. O modelo adotado no país une a atuação de órgãos federais como Banco Central, Polícia Federal, Receita, Ministério Público, Poder Judiciário e o mais recém-criado Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf). Hoje, todo correntista que assuma uma movimentação atípica ou suspeita em sua conta bancária cai num relatório do Banco Central e passa a ser observado mais cuidadosamente por essas frentes. Juntos, esses órgãos rastreiam os mal-intencionados e tentam punir os culpados. O exemplo brasileiro já tem sido discutido internacionalmente, segundo o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Gilson Dipp.

A briga contra os ”lavadores” é pesada. São quadrilhas milionárias – muitas vezes bilionárias -, pagam bons advogados, são influentes, corrompem e escapam. Os crimes são os mais diversos: ”laranjas”, contas-fantasmas, evasão fiscal e de divisas, câmbio paralelo, pirataria, contravenção, gigantescos caixas-dois. ”O que diferencia a corrupção no Brasil é a impunidade. Pelo menos até agora. Parece que as coisas estão mudando”, admite primeiro, depois celebra, o ministro.

Dipp foi o pai da idéia de criar as varas federais especializadas em combater os crimes contra a moeda. Hoje já são cerca de 20 delas no País, uma inclusive no Ceará. ”O Brasil não tinha uma lei de combate à lavagem e à detecção desse crime, que é complexo, transnacional, praticado com tecnologia”, explica. A legislação específica surgiu em 3 de março de 1998, na sanção do presidente Fernando Henrique.

Gilson Dipp coordenou a comissão do Conselho de Justiça Federal que efetivou as varas especializadas. Atualmente, é membro do Gabinete de Gestão Integrada da Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro, ligado ao Ministério da Justiça, que faz a aproximação permanente dos órgãos fiscalizadores.

O ministro concorda que Fortaleza esteja se consolidando como porto da lavagem para muitos estrangeiros suspeitos (não todos), que adquirem bens – principalmente imóveis – para dar vazão a seus dólares de origem duvidosa. ”Eu sempre que vinha aqui e passava à noite na avenida Beira Mar, aqueles prédios maravilhosos, uma ou duas luzes acesas, um ou dois apartamentos. E o resto?”, descreve. Na entrevista a seguir, Dipp também aborda a necessidade de tipificar uma lei no Brasil para o crime de terrorismo. Em palestra que participou em setembro passado em Fortaleza, durante o Congresso Nacionais de Delegados Federais, o ministro admitiu que se um atentado terrorista fosse registrado no país hoje, a Lei de Segurança Nacional talvez precisasse ser acionada. A Lei foi a mesma usada como argumento pelo governo militar brasileiro para justificar atrocidades que a história brasileira recente ainda tenta esquecer.


O POVO – O senhor fala na falta de tipificação do crime de terrorismo e na possibilidade de reedição da Lei de Segurança Nacional. Isso é discutido nas cortes da Justiça brasileira?
Gilson Dipp – Não. O STJ é um tribunal superior que aplica a lei federal. Isso não foi nem sequer questionado no STJ, muito menos nas instâncias ordinárias. Não temos aí nenhuma evidência de terrorismo. Crime de terrorismo houve na época da ditadura militar, em que se descreveu aqueles atos políticos como atos de terrorismo. Não há terrorismo no Brasil, não há constatação de nenhum crime de terrorismo. O que eu digo é que se houvesse alguma manifestação desse teor, talvez pudesse ser enquadrado nessa Lei de Segurança Nacional.

OP – Mas hoje não tem tipificação para o terrorismo no Brasil?
Gilson Dipp – Não tem. Terrorismo é crime previsto na Constituição. É crime antecedente ao crime de lavagem de dinheiro. Só que não havendo tipificação, não se pode processar ninguém por terrorismo. O que eu disse é que, eventualmente, se houvesse a prática de um ato que se equiparasse a um típico ato de terrorismo nos padrões internacionais, talvez nós pudéssemos, no Judiciário, Polícia, Ministério Público, dar a resposta ressuscitando a Lei de Segurança Nacional. E ela não tipifica o crime de terrorismo, mas descreve atos de terrorismo. Ou seja, incendiar, depredar prédios públicos, incitar…

OP – O único uso da Lei de Segurança Nacional no Brasil foi na época da ditadura.
Gilson Dipp – Na época da ditadura e no período subseqüente, por algum tempo. Não tenho nenhum registro de aplicação recente, moderna.

OP – Que pena seria aplicada a um terrorista com base nessa lei?
Gilson Dipp – Não tenho certeza. É uma lei que prefiro não manusear. É melhor deixar dormindo. O que é talvez mais importante, e há posição internacional nesse sentido, é de qual o financiamento para o terrorismo. Para tipificar financiamento ao terrorismo, vamos ter que ter a tipificação do terrorismo, para não se financiar algo que não se sabe o que é. E financiamento ao terrorismo, o Departamento de Estado Americano dos Estados Unidos insiste que o Brasil tipifique o terrorismo para tipificar o financiamento ao terrorismo. Porque eles afirmam que aqui há financiamento.

OP – Só os Estados Unidos insistem nessa exigência de tipificação?
Gilson Dipp – Agora também a ONU (Organização das Nações Unidas), também pressionada pelas grandes potências.

OP – Mas eles apresentam evidências?
Gilson Dipp – Evidências. Eles dizem que há suspeita na tríplice fronteira (em Foz do Iguaçu, no Paraná). É uma colônia sírio-libanesa e lá há uma movimentação imensa de dólares. Hoje está muito restrita a fiscalização, mas chegou a movimentar 80 milhões de dólares por dia, só abaixo de Hong Kong em todo o mundo. E que esse dinheiro circula livremente na fronteira sem fiscalização, entre Paraguai, Brasil e Argentina. Essa colônia libanesa lá talvez chegue a 40 mil pessoas. E sabemos que essas pessoas vêm do sul do Líbano, onde tem a sede do Hezbollah, que remetem dinheiro para seus parentes no sul do Líbano. Há duas imigrações grandes de libaneses. Uma depois da Segunda Guerra Mundial e outra a partir da metade da década de 80 até a metade da década de 90. Essa segunda imigração foi decorrente da guerra civil libanesa. Em ambos os casos, esses libaneses que migraram para cá são do sul do Líbano, mais precisamente do Vale do Beka, na fronteira de Israel com a Síria. Lá é a sede, onde prepondera o Hezbollah, partido de Deus. É um partido político, com representação no congresso libanês, apreciado por boa parte da população, porque tem um caráter muito assistencialista. Tem escolas, creches, hospitais, tem rede de tevê, rádio. É quase um Estado dentro do Estado do Líbano. Israel e Estados Unidos, por alguma razão, dizem que é um movimento puramente terrorista que visa a desconstituir o Estado de Israel.

OP – Houve uma investigação muito forte dos Estados Unidos na tríplice fronteira após o atentado ao World Trade Center, em 2001.
Gilson Dipp – Houve. Dizem até que encontraram fotografias no Afeganistão de libaneses que moravam em Foz do Iguaçu, que estariam envolvidos. Naquela época, pelo que se lê, houve até investigação não só quanto a financiamento, mas com troca de terrorismo. Que a tríplice fronteira poderia abrigar pessoas envolvidas com o terrorismo internacional.

OP – Quando o senhor recebeu essa comissão americana, eram juízes?
Gilson Dipp – Não. Vieram membros do Departamento de Estado, da Polícia Secreta Americana, do FMI, era uma comissão ampla. Eles me visitaram talvez porque fui o grande propulsor dentro do Conselho da Justiça Federal, da criação das varas federais especializadas. Tem aqui em Fortaleza, o titular é o juiz Danilo Fontenelle. Como esta é a primeira experiência no mundo, de processamento desses crimes, e cria um núcleo de cooperação, eles vieram conhecer essa experiência. Mas nessas conversas, o que veio sempre à tona foi por que o Brasil não ratificou ainda a Convenção da ONU contra o terrorismo, por que não tipificou o terrorismo, por que não tipifica o financiamento ao terrorismo.

OP – Qual foi a resposta dada sobre isso?
Gilson Dipp – A dificuldade de tipificar o terrorismo não é só do Brasil. É de todo mundo, até pelos conceitos diversos. É um ato de terrorismo ou um ato de libertação nacional e movimento político. Nem a ONU conseguiu chegar a um consenso. Há mais de 12 convenções internacionais sobre terrorismo e nenhuma chegou a uma conclusão. Segundo que o Brasil, no dia que houver um atentado terrorista, fatalmente aquelas leis de emergência vão surgir e vão tipificar na marra. Também não há vontade política. Certamente essa pressão americana está se dando, pressão dos países ricos suscetíveis da prática desses atos. Talvez agora com os Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro, acho que uma legislação de emergência e para dar segurança aos participantes, o Brasil vai criar a lei que tipifique o terrorismo internacional.

OP – Esse receio intervencionista que há para aquela região…
Gilson Dipp – A preocupação é grande. Primeiro: como se sabe que os Estados Unidos têm uma preocupação muito grande com a tríplice fronteira, com suspeita de financiamento de terrorismo ou até de atos terroristas, essa pressão se verifica com a vinda de missão de oficiais, e fala-se nessa tentativa de que vão fazer uma base militar no Paraguai ou que já tenham algumas missões no Paraguai. Acredito que se a preocupação dos Estados Unidos é essa, de ter um controle sobre a área pela insuficiência do controle das três nações, ela vá, sim, se instalar no Paraguai, que é o país mais vulnerável de responder a essa pressão. Brasil e Argentina, até pela postura de seus governos, de esquerda, vão repudiar essa alternativa.

OP – Por que o Brasil é um país tão suscetível para os crimes de lavagem de dinheiro? E Fortaleza está se tornando uma capital referência, vamos considerar assim.
Gilson Dipp – Eu sempre que vinha aqui e passava à noite na avenida Beira Mar, aqueles prédios maravilhosos, uma ou duas luzes acesas, um ou dois apartamentos. E o resto? Não sei se hoje é assim.

OP – É. O que se admite é que o mercado imobiliário daqui tem uma grande venda para estrangeiros. O que não quer dizer nada, é uma só uma constatação.
Gilson Dipp – O Brasil passou a ser propício para lavagem de dinheiro em meados de 94, 95. Primeiro porque não tinha uma lei tipificando o crime de lavagem de dinheiro. Segundo que não tínhamos nenhuma experiência no combate à lavagem e na detecção desse crime, que é complexo, transnacional, praticado com tecnologia. Tínhamos uma barreira natural, que era a inflação. Assim como o mercado formal aqui não aplicava porque via o dinheiro desvalorizado no dia seguinte, também o lavador não tinha o interesse em aplicar no Brasil. Seja no mercado financeiro, na compra de imóveis, de gado, de jóias ou obras de arte. Mas o Brasil começou a ter uma abertura econômica mundial a partir do governo Collor. Facilitou importação, exportação etc. e tal, abriu o país. Houve a estabilidade dos preços com o Plano Real. Terceiro: uma alta taxa de juros que é praticada aqui no Brasil. Ou seja, a remuneração do capital é grande. Mais uma questão: o Brasil tem um sistema financeiro e bancário altamente desenvolvido. É quase um supermercado de serviços financeiros, oferecendo múltiplos serviços. Tanto formais, sofisticada operação, mais dificuldade tem de fiscalizar. O Brasil tem uma imensidão de fronteiras, via de regras desguarnecidas, que servem de instrumento para a circulação dessas organizações. Que não precisam das fronteiras no sentido presencial, podem ir por computador, mas para o trânsito dessas organizações criminosas. As fronteiras do Brasil, até o final do século 19, eram a bandeira da soberania nacional. Hoje já se sabe que servem simplesmente de instrumento para a circulação dessas organizações, mantendo a impunidade. Temos também uma economia informal que facilita isso. Dinheiro que não circula por bancos, circula em espécie por camelôs, pirataria, contravenção. Não há fiscalização, não tem Receita Federal, não tem Banco Central. Temos um sistema desenvolvido por câmbio paralelo. Nas nossas fronteiras, o dólar paralelo, as casas de câmbio, agências de turismo que operam com esses valores, nas nossas fronteiras elas praticamente configuram um sistema bancário paralelo. Tudo isso é propício. E mais: nós temos aqui uma cultura de corrupção, de crimes praticados contra a administração pública. E não é que a nossa corrupção seja diferente do resto do mundo. O que diferencia a corrupção no Brasil é a impunidade, a certeza de que não havia punição. Pelo menos até agora, parece que as coisas estão mudando.
Nós temos também um sistema muito grande de sonegação fiscal, de Caixa 2, que facilita o envio de bens para o exterior, a evasão de divisas, e conseqüentemente a lavagem de dinheiro. O Brasil usa muito a possibilidade de abrir empresas off-shores em paraísos fiscais, que são países que têm uma carga tributária muito baixa ou quase inexistente. São países que não têm outra atividade econômica que não seja o mercado financeiro, por isso são explorados pelos bancos estrangeiros. Um exemplo nosso aqui do lado é o Uruguai, que hoje é um paraíso fiscal. Não é um país cooperante, inclusive, com o Brasil. Mas por que esse dinheiro não fica lá e sempre volta? Porque ninguém quer deixar o dinheiro num paraíso fiscal, com uma remuneração quase zero. É preciso que ela retorne, onde lá poderá ser melhor remunerado, mas através de mecanismos de dissimulação que são complexos e que afastem cada vez mais esses valores da sua origem criminosa, passando por várias contas, vários países, e voltem ao país com a aparente licitude para ser empregado em atividades lícitas, ilícitas e para realimentar o crime e o poder de corrupção.

OP – No ranking, o Brasil está em que situação?
Gilson Dipp – Alguns especialistas dizem que o Brasil é o 20º país no mundo no ranking de ocupação em paraísos fiscais. E que isso equivaleria hoje a 200 bilhões de dólares de dinheiro verde-amarelo. Tanto que o governo falava, não está falando mais porque a crise não deixou, em promover uma ampla anistia, para que esse dinheiro retorne ao país pagando tributos. Evidentemente que não poderia ser dinheiro decorrente de tráfico, de contrabando de armas e munições ou de tráfico de pessoas. Mas é muito difícil saber se esse dinheiro era ou não proveniente da prática do crime grave. Certamente isso é uma política fiscal e governamental em busca do velho superávit primário, que é o que norteia todas as operações econômicas.

OP – O Ministério da Justiça tem um departamento de recuperação de ativos, que deve tentar rastrear e recuperar o dinheiro que saiu pela evasão fiscal. O que se tem de números? Quanto se recupera de dinheiro desse tipo de crime?
Gilson Dipp – O Brasil tem dois órgãos nisso. O órgão central de investigação, de inteligência financeira, criado pela lei é o Coaf (Conselho de Controle das Atividades Financeiras). Esse tem uma estrutura pequena e recebe dos bancos toda a movimentação financeira tida como atípica, fora dos padrões normais de um cliente ou movimentações suspeitas. E aí ele tem a obrigação por lei de encaminhar, quando mereça, esses procedimentos ao Ministério Público e à Polícia. Nós temos criado no Ministério da Justiça a Divisão de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional, que está voltada para a política de recuperar os bens que estão no Exterior em decorrência do crime. Exemplo mais prosaico foi o caso do juiz Nicolau dos Santos Neto. Luta com alguma dificuldade porque a recuperação de ativos depende da cooperação internacional. O Brasil, para ter sucesso na recuperação de bens no Exterior, precisa celebrar não só acordos internacionais, mas acordos bilaterais de cooperação internacional, facilitando a vinda desses bens independentemente da inscrição de cartas rogatórias, que é um instrumento de cooperação internacional já ultrapassado quando se trata de crimes complexos. Há muitos bens bloqueados no Exterior, ainda em número insuficiente, mas está dependendo da ampliação desses acordos bilaterais. E para concepção desses acordos estão sendo convidados juízes e o Ministério Público para participar das delegações. Eu mesmo fui ao Reino Unido, à Espanha. A cooperação internacional e a recuperação de ativos não é fácil. Nem todos os países são cooperantes. Quando se trata de cooperação internacional em relação a tráfico de entorpecentes e ao terrorismo, se obtém a resposta pronta. Quando se trata de lavagem de dinheiro, principalmente a proveniente dos crimes de corrupção da administração pública, essa cooperação já não é mais obtida. Um exemplo, na Suíça a sonegação fiscal não é crime, apenas uma infração administrativa. Toda e qualquer documentação que for enviada da Suíça em decorrência desses acordos bilaterais não servem para instruir uma ação penal por sonegação fiscal. Então, não é muito fácil, nós não temos uma experiência de recuperação de ativos, de valores bloqueados, mas estamos utilizando muito desses mecanismos de cooperação para bloquear bens no Exterior. Um exemplo claro é a operação Farol da Colina, em que Polícia, Ministério Público e juiz estão usando com os Estados Unidos o acordo bilateral. Há uma conscientização hoje das autoridades brasileiras de que se combate o crime financeiro, lavagem, crime organizado, no bolso. Ou seja, é necessário que enfrente o infrator não com o aumento da pena, mas retirando-lhe os bens. Afetando no bolso, a crise financeira da organização, com a recuperação desses bens, é o que vai fazer com que ela desapareça. Não adianta levar para a prisão porque o preso será substituído por outro na organização imediatamente.

OP – O senhor faz uma crítica a setores do Judiciário que trabalham simplesmente com o Código Penal na mão, e não buscam outras legislações que deveriam buscar.
Gilson Dipp – Eu não estou criticando. Não temos nenhuma tradição no nosso sistema, desde os bancos acadêmicos que até hoje os programas de direito penal, processual, são os mesmos de quando terminei a faculdade em 1968. Nenhum ensino, com raríssimas exceções, abrange crimes modernos. Crimes de organizações criminosas, crimes tecnológicos… Isso está sendo desmitificado agora com as varas federais especializadas, em trabalho com cooperação internacional, quebra de sigilo bancário, delação premiada. Nossa cultura foi feita para isso. Nós mesmos, não só juiz de primeiro grau, mas também os dos tribunais superiores, estamos acostumados a trabalhar com a nossa legislação, Código Penal, Código de Processo Penal, algumas leis extravagantes. Nenhum de nós tem a cultura, o conhecimento, a prática de verificar se tem um acordo internacional que pode ser aplicado. Essa convenção da ONU sobre o crime organizado, que conceitua o que seria organização criminosa, ela é internalizada na nossa legislação pelo decreto 5.015, de março de 2004, ratificado pelo Presidente da República. Pode ser que pela Emenda Constitucional seja aplicado como lei.

OP – A delação premiada é um instrumento que se pode usar?
Gilson Dipp – E está se usando. Nas varas especializadas está.

OP – Mas a prática tem sido mal interpretada, está há poucos anos, e há principalmente desconhecimento.
Gilson Dipp – Não são tão poucos anos. O direito premial, que é a delação premiada, o réu colaborador, essa figura já existe em inúmeras leis. Está na lei dos crimes hediondos, nas leis que modificaram os crimes contra a ordem tributária, na lei do sistema econômico-financeiro, está na lei de lavagem de dinheiro, na lei do crime organizado, no artigo 159 do Código Penal, quando trata de extorsão mediante seqüestro; enfim, está prevista em várias situações da lei, com maior ou menor abrangência. Não apenas aparentando diminuição da pena, mas outros possibilitando, como no caso de lavagem de dinheiro, a substituição da pena, de prisão para o restritivo de direitos, ou o próprio perdão judicial. Isso causa para nós, porque nossa formação vem do direito canônico, formação judaico-cristã, certa perplexidade porque está se atenuando o princípio da obrigatoriedade da ação penal. E mais, estamos tratando o crime, e não é da nossa cultura, como um negócio, uma transação. Deixar de apenar alguém que cometeu o mesmo crime por questões subjetivas. O direito premial é legal, é aplicado nos Estados Unidos, na Alemanha, na Itália, sempre com o controle jurisdicional. Ele tem grande importância. Não serve, é inócuo, inoperante para a investigação do crime comum, mas é altamente positivo quando se trata de crime complexo.

OP – E o risco da banalização?
Gilson Dipp – Ele não pode ser banalizado. Mas há uma incompreensão. O acordo é feito pelo réu, sua defesa, Ministério Público e juiz. Acordo formal, em autos apartados em segredo de justiça. O benefício só será concedido se o réu trouxer informações concretas para desbaratamento da quadrilha, recuperação de bens, para a apuração da autoria e materialidade. Mais do que isso: não pode, só a delação, servir como elemento para a condenação no processo penal. Aliás não serve nem para fundar a denúncia. Precisa que as informações sejam comprovadas com outros elementos decorrentes ou não dessa troca de informações. O compromisso é com a sociedade. E nada impede que o infrator que cometa um crime grave, que mereça depor sem condenação, possa ser também um bom informante. No âmbito da organização criminosa não há regras, não há moral. A delação interessa à sociedade. Mas nós temos uma dificuldade, em co-réus colaboradores, porque não temos um sistema eficiente de proteção a vítimas, a testemunhas e a esses co-réus.

OP – O senhor é o criador dessas varas federais especializadas no combate ao crime de lavagem de dinheiro. O que elas trazem de exemplo para modificar o trabalho na Justiça Estadual?
Gilson Dipp – Eu presidi uma comissão dentro do conselho da Justiça Federal que estudou o porquê de os crimes de lavagem de dinheiro terem tão poucos inquéritos, poucas ações penais, poucos julgamentos. Reunimos todos os órgãos institucionais – Banco Central, Receita, Coaf, Ministério Público, Polícia Federal – e essa comissão foi o embrião da estratégia nacional de comat à lavagem de dinheiro hoje existente no Ministério da Justiça. Certamente foi o começo de tudo. Uma das conclusões que chegamos é que é necessária a especialização. Crimes complexos não se persegue sem ter um mínimo de especialização. Como a lavagem, via de regra, é feita pelo sistema financeiro, criamos vara especializada. Especializou Ministério Público, juiz, polícia, tudo num núcleo, com apoio do Banco Central e da Receita Federal. Essa especialização é a garantia de uma eficácia tanto no processo como para o próprio réu. Primeira experiência no mundo, não foi gasto um centavo do orçamento da Justiça Federal. Especializamos varas que já existiam com juízes já existentes, e foi feito apenas um treinamento para os funcionários com a colaboração dos Tribunais Regionais Federais. A competência da justiça estadual em matéria penal é mais para o crime individual, crime comum. E há uma colocação errônea, que hoje está mudando, de que lavagem de dinheiro é crime de competência somente federal. É também de competência estadual quando o crime precedente for de competência estadual. Hoje tem maneiras mais prosaicas de lavar dinheiro, o sistema financeiro está muito blindado nas políticas de ”conheça seu cliente”, ”conheça a origem de depósito do seu cliente”, ”conheça seu funcionário”, mas há formas prosaicas de lavar dinheiro que precisa desenvolver. Bingos: circula muito dinheiro, são pagos muitos prêmios. Os jogos de azar, algumas dessas organizações não governamentais do exterior, que não são fiscalizadas pelo Banco Central nem pela Receita, que estão aqui muitas vezes com a aparência de serem beneficentes. Temos essas entidades beneficentes e filantrópicas, que não são fiscalizadas nem são obrigadas a isso. Hospitais, creches, escolas, as igrejas de fachada que movimentam muito dinheiro. Enfim, crimes que num primeiro momento são de competência da Justiça estadual. É preciso estar conscientizando os Ministérios Públicos estaduais de que a lavagem de dinheiro é um problema também da justiça estadual. O que as varas trazem para esses juizados estaduais e para outros juizados federais não especializados? Está se fazendo uma nova experiência. Está mostrando que o juiz criminal brasileiro começa a tratar processos cada vez mais complexos e que não pode ser um juiz neutro, não que tire sua autonomia ou independência, mas que também seja um co-partícipe na instrução processual e na investigação. Não pode ser mais aquele juiz que lava as mãos perante as provas que lhe caem no colo. Ele tem compromisso com a sociedade, não pode apenas ficar vinculado ao julgamento do caso concreto. Ele não pode, sim, perder a autonomia. O grande desafio do juiz criminal brasileiro, hoje, é ter a noção de equilíbrio entre os direitos e as garantias individuais, constitucionalmente previstos, mas guardar correlação com o interesse social e a ordem pública.

OP – A Internet ainda é um campo desconhecido para a Justiça?
Gilson Dipp – Nos dias de hoje, os estudiosos dizem que o Brasil é o terceiro país do mundo em crimes cibernéticos, os cybercrimes. Desde apropriação de dados pessoais, falsificação de cartões de crédito, invasão do sigilo bancário, uso dos ”laranjas”. Hoje os operadores do direito tentam colocar isso como estelionato, alguns outros crimes já existentes, mas vai chegar o momento que vão ser tão sofisticados que não vai ter tipo penal que enquadre. Precisamos trabalhar ações mais adequadas em relação aos crimes praticados pela Internet. A pedofilia, exploração sexual de adolescentes. Hoje diria que a metralhadora foi substituída pelo mouse e pelo computador.

OP – O senhor ouviu falar do doleiro cearense Alex Ferreira Gomes, procurado da Justiça Federal por vários crimes ligados a lavagem de dinheiro?
Gilson Dipp – Li alguma coisa. No mercado de câmbio paralelo, o doleiro hoje represente para a lavagem de dinheiro o que o traficante de drogas representa para o usuário. Essas pessoas que residem no Exterior e precisam remeter dinheiro para cá, procuram empresas criadas para pagar menos imposto e não pagar a taxa bancária. Esse dinheiro é entregue a esses doleiros, que não fazem a remessa física e alguém, um corrupto, um caixa dois, que tem um sistema de compensação própria, valorizam esse dinheiro. O doleiro hoje talvez seja o meio mais eficaz de lavagem de dinheiro. Hoje se sabe que há meios mais sofisticados. Não se usa mais o ”laranja”, a conta-fantasma, os doleiros. Já se usa empresas formais, empresas de publicidade como está se vendo aí, empresas de informática, que têm contas reais e movimentação financeira grande. E aí é mais difícil de detectar uma operação suspeita.

OP – O doleiro tende a ser uma figura ultrapassada?
Gilson Dipp – Os mecanismos se modificam. A criatividade das organizações criminosas é muito grande. Se você me perguntar hoje qual o meio mais eficaz de lavagem de dinheiro, eu diria que é aquele método que ainda não conhecemos.


O QUE DIZ A LEI

Lei 9.613, de 3 de março de 1998
Dispõe sobre os crimes de ”lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – Coaf – e dá outras providências.

Art. 1º – Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime:
I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;
II – de terrorismo e seu financiamento;
III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção;
IV – de extorção mediante seqüestro;
V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos;
VI – contra o sistema financeiro nacional;
VII – praticado por organização criminosa;
VIII – praticado por particular contra a administração pública estrangeira.
Pena: reclusão de 3 a 10 anos e multa.
 1º – Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo:
I – os converte em ativos lícitos;
II – os adquire, recebe, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere;
III – importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros;
 2º – Incorre, ainda, na mesma pena, quem:
I – utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo;
II – participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei.
(…)
Características Próprias:
– Crimes insucetíveis de fiança e liberdade provisória (art. 3º)
– Possibilidades: Apreensão ou Seqüestro de bens, direitos ou valores em território nacional ou estrangeiro (art. 4º e 8º).


DADOS PESSOAIS

Gilson Langaro Dipp nasceu em 1º de outubro de 1944, em Passo Fundo (RS). É casado e tem três filhos. Formou-se bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais em 1968, pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atuou na advocacia até 1989, quando assumiu vaga de desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região em abril daquele ano. É ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) desde junho de 1998. Preside a Comissão de Estudos relativos aos crimes de lavagem de dinheiro no Conselho da Justiça Federal. Também é membro do Gabinete de Gestão Integrada da Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro do Ministério da Justiça. Entre os casos mais famosos que passaram em suas mãos está o processo contra o ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf, acusado de vários crimes nessa área.