“Pagamento deve ser investigado”

Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, diz que depósito de R$ 1 milhão feito pelo PT à empresa Coteminas veio à tona devido à ação dos mecanismos do governo federal para detectar casos anormais

O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, defendeu ontem uma investigação profunda sobre o pagamento de R$ 1 milhão feito em maio deste ano pelo PT à empresa Coteminas, do vice-presidente da República José Alencar. Há suspeita de que o dinheiro tenha saído do caixa 2 do partido. Segundo Bastos, porém, os dados que permitiram que a suspeita viesse à tona foram informados pelo próprio governo federal. “Tomei conhecimento disso pelos jornais. É óbvio que é uma questão que precisa ser investigada. Isso é um lugar comum, mas é inevitável. E uma coisa importante é que estão funcionando os mecanismos do estado, de detectar essas coisas que são anormais. Porque isso foi comunicado ao Ministério Público, à CPI, pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Fazenda, que faz parte da estrutura de combate à lavagem de dinheiro”, disse.

Para a Ordem do Advogados do Brasil, a denúncia tem que ser apurada com rigor. O presidente da OAB, Roberto Busato, afirmou nesta segunda que “toda promiscuidade tem que ser condenada e penalizada”. “Ninguém está acima da lei: nem o presidente da República, nem o vice-presidente da República, nem o partido do governo. Todos devem ser penalizados se não cumpriram as disposições eleitorais”, disse. A CPI dos Correios quer informações sobre o depósito feito pelo PT. O sub-relator de movimentações financeiras da comissão, Gustavo Fruet (PSDB-PR), disse que vai enviar ofício ao Coaf e ao Bradesco, banco onde a Coteminas tem a conta, pedindo detalhes do depósito. A CPI pretende identificar a mulher que fez o depósito. A CPI suspeita que ela seja secretária do então tesoureiro do partido Delúbio Soares.

O presidente da Coteminas, Josué Gomes da Silva, filho do vice-presidente, reiterou que não sabe a origem dos supostos recursos pago pelo PT à empresa a título de pagamento de uma dívida relativa à confecção de camisetas para a campanha presidencial de 2002. “O dinheiro foi pago pelo PT, e como vou colocar sob suspeita os recursos vindos do partido?”, disse, reafirmando que a Coteminas não tem responsabilidade sobre a origem dos recursos dos clientes. “Não cabe a mim verificar se os clientes que nos pagam estão contabilizando ou não seus recursos”, disse. Ele ainda afirmou que a empresa continua a negociar com o partido o pagamento da dívida, que somaria mais de R$ 12 milhões.

Doleiros abasteciam diplomatas em Brasília


ESCÂNDALO

Operadores ilegais tinham livre acesso a embaixadores e mantinham contato permanente com funcionários das representações estrangeiras

Samy Adghirni

Da equipe do Correio

Já se sabe que a Polícia Federal (PF) fechou o cerco contra os principais doleiros que atuam em Brasília. Mas a identidade da “clientela” é mantida sob sigilo pela Justiça, já que as investigações continuam. Segundo o Correio apurou, uma freguesia cativa desses cambistas era formada pelo corpo diplomático. Funcionários de embaixadas em busca de taxas preferenciais e de comodidade (há pouquíssimos pontos de câmbio regulares na cidade) recorriam sistematicamente aos operadores ilegais para comprar e vender moeda estrangeira e descontar cheques de bancos do exterior. Apesar do inquérito em andamento, alguns doleiros continuam operando no Distrito Federal.

A pedido da Justiça Federal, a PF lançou em julho passado a Operação Dracma, contra crimes financeiros. Na tarde do dia 12 daquele mês, 90 agentes cumpriram mandados de prisão e apreensão em 17 locais — casas de câmbio clandestinas e residências. O equivalente a mais de R$ 1 milhão, em moeda nacional e estrangeira, foi apreendido. A PF pediu a prisão de sete dos maiores doleiros de Brasília, mas o Judiciário negou. Os processos estão sob responsabilidade da 10ª Vara Federal.

No início das investigações, em 2003, escutas telefônicas revelaram ligações entre embaixadas e doleiros. Mesmo assegurados da imunidade diplomática (leia Para saber mais), os funcionários estrangeiros preferiam delegar as operações a empregados brasileiros. Secretárias ou motoristas telefonavam para os cambistas, que iam às embaixadas entregar os pedidos. Em outras ocasiões, os funcionários usavam os carros oficiais para se dirigir até as bases operacionais dos infratores — hotéis e agências de turismo no Plano Piloto. A Polícia Federal gravou conversas com os próprios diplomatas.

Os doleiros eram figuras carimbadas das recepções oficiais e tinham livre acesso aos embaixadores, com quem mantinham excelente relacionamento. As embaixadas onde houve movimentação mais intensa são, segundo um doleiro ouvido pela reportagem, as da Síria, Argélia, Marrocos e Líbano. Os operadores também prestavam serviço a representações de países europeus e da África Subsaariana. Parte das operações envolvia pessoas físicas — dinheiro em espécie para viagens, conversão de pagamentos feitos em dólar. Outras consistiam em troca de cheques em divisa internacional, já que as representações mantêm boa parte de sua contabilidade em moeda estrangeira.

Apreensão

As investigações deixaram o microcosmo diplomático em polvorosa, depois que secretárias de embaixadores foram convocadas a depor como testemunhas na PF. Os doleiros tiveram computadores apreendidos e contas bancárias bloqueadas (uma delas tinha R$ 800 mil). Alguns foram indiciados por lavagem de dinheiro (lei de 1998), outros por crimes contra o sistema financeiro (lei de 1986) — entre os quais, evasão de divisas. Carlos Habib Chater, envolvido em outros processos, só teria escapado da prisão graças à Liberdade Provisória concedida pelo juiz titular da 10ª Vara Federal.

A maioria dos doleiros parou de negociar com as embaixadas, mas um deles admitiu manter contato com as representações. “São transações pequenas, só para pessoas com quem mantenho amizade”, afirmou o acusado. Ele não é o único investigado a continuar operando. Ao entrar num hotel onde o principal doleiro do corpo diplomático atuou, perto do Shopping Pátio Brasil, a reportagem foi abordada por uma moça que ofereceu: “É para câmbio?” O responsável pelas operações, um dos investigados que tiveram a conta bloqueada, negou que trocasse dólar. E disse que só falaria na presença do advogado.

Diplomatas dizem que não sabiam que as transações eram criminosas, alegando que os contatos dos doleiros eram repassados normalmente entre funcionários. Mas é consenso entre os estrangeiros residentes em Brasília que trocar legalmente moeda estrangeira na cidade requer paciência. Há apenas três agências do Banco do Brasil que fazem a operação, cobrando taxas e comissão elevadas — sem falar nas filas. O mercado de câmbio no DF esquentou com a abertura de uma casa de câmbio em um shopping da Asa Norte.

“São transações pequenas, só para pessoas com quem mantenho uma relação de amizade”

De um dos doleiros indiciados após a operação realizada em julho último pela Polícia Federal

PARA SABER MAIS

Imunidade por convenção

Diplomatas estrangeiros não estão sujeitos à jurisdição do país em que residem e, portanto, não podem ser indiciados ou processados. Tampouco são obrigados a depor como testemunha. A imunidade diplomática está assegurada na Convenção de Viena (1963), documento ratificado por 191 países que define as regras da boa convivência entre os países. Há exceções para casos de extrema gravidade, como assassinatos. Um diplomata georgiano que estava bêbado quando atropelou uma brasileira em Washington (Estados Unidos), em 1997, foi processado em seu país e condenado a sete anos de prisão.

Mesmo garantindo a inviolabilidade, a Convenção de Viena deixa claro que os diplomatas têm a obrigação de “respeitar as leis e regulamentos do Estado de residência” (art. 55). Por isso, em Brasília e nas outras capitais, abusos e atos ilegais cometidos pelo corpo diplomático deixam os governos locais em situação delicada. No caso dos doleiros, funcionários do Itamaraty disseram ao Correio que não lhes cabe repreender os colegas estrangeiros.

O Ministério das Relações Exteriores brasileiro, a exemplo de todas as chancelarias do mundo, tem uma Coordenação-Geral de Privilégios e Imunidades, ligada ao Departamento de Cerimonial. Ali são tratados diariamente casos como litígios e multas de trânsito, assuntos fiscais (reembolso de impostos sobre combustíveis, entre outros) e questões administrativas diversas (segurança, protocolo, atribuição de placas para carros diplomáticos).

Não é de hoje que diplomatas estrangeiros violam as leis brasileiras. A maioria dos casos é acobertada, mas alguns já foram noticiados pela imprensa — abuso sexual, agressões físicas, desacato…(SA)