Marco Aurélio afirma que Jobim desacredita a Justiça
Ministro que usa a toga para alavancar candidatura eleitoral denigre o tribunal e desacredita a Justiça. O ministro em questão, obviamente, é o atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim. O dono da opinião que abre este texto é de um também ministro do STF: Marco Aurélio, naturalmente.
Em longa entrevista às repórteres Mariângela Galucci e Christiane Samarco do jornal O Estado de S.Paulo, publicada neste domingo (5/2), o ministro vai além e critica Jobim diretamente por ter insinuado que juízes devem preocupar-se antes com a governabilidade e só depois com a legalidade ou constitucionalidade dos atos do Executivo.
A entrevista repercutiu intensamente logo nas primeiras horas deste domingo. A quem o procurou para cumprimentá-lo pela coragem, Marco Aurélio explicou que não poderia se omitir sob pena de passar para a sociedade a noção de que os demais ministros do STF compactuam com a politização partidária que se verifica em Brasília — o que não é o caso. Para o ministro, o STF nunca teve sua imagem tão desgastada por conta desses fatores.
Leia a entrevista de Marco Aurélio ao Estadão
‘Toga não pode ser usada para se chegar a um cargo eletivo’
Ministro do STF diz que comportamento político de Nelson Jobim denigre imagem do Poder Judiciário
Por Mariângela Gallucci e Christiane Samarco
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, que assumirá a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em março e comandará as eleições, diz — sem citar o nome — que o comportamento político do presidente do STF, Nelson Jobim, denigre a imagem do Judiciário. “A toga não pode ser utilizada visando a chegar ao cargo buscado, ao cargo eletivo”, afirma.
Marco Aurélio conta ter ficado perplexo com o discurso de Jobim na abertura do ano judiciário, no STF. “Ele bateu na tecla segundo a qual precisamos interpretar e aplicar a Constituição com os olhos voltados à governabilidade. Como se a governabilidade se sobrepusesse à lei fundamental.”
Na campanha deste ano, ele garante que a Justiça Eleitoral será mais ágil contra abusos, mas acha difícil acabar com o caixa 2. Eleitor do presidente Lula em 2002, o ministro declara nesta entrevista concedida quinta-feira, que enjoou de “frutos de mar”. Os principais trechos da entrevista:
Jobim tem sido criticado no Congresso por sua atuação política.
Essa também é a leitura que a comunidade jurídica faz.
Como é ter um presidente do STF na condição de candidato?
Se realmente temos esse ministro, é uma situação inusitada, singular na história do STF. Isso denigre a imagem do Judiciário. Devemos ter no Judiciário pessoas vocacionadas a atuarem nessa missão sublime que é julgar os semelhantes e conflitos entre semelhantes. Toda vez que alguém tem um plano, que pode ser político, evidentemente fica numa situação de incongruência. A toga não pode ser utilizada visando a chegar ao cargo buscado, ao cargo eletivo. Não me refiro especificamente a Jobim. O que assento é que o juiz precisa ser juiz 24 horas por dia. Não falo especificamente de Jobim. Pelos jornais, ele tem essa visão abrangente. Não sei se em decorrência do fato de ter sido político. Agora, pelo jeito, a política é irresistível.
Houve prejuízo ao STF?
Acho que o Supremo vive uma fase que não se coaduna com a tradição do próprio Supremo. Em que se veicula que aquele que o representa, que o corporifica, está visando a um passo que é fora do Judiciário. Um passo no âmbito da política.
O discurso feito por Jobim no STF foi de juiz ou de político?
Fiquei perplexo. Ele bateu na tecla segundo a qual nós precisamos interpretar e aplicar a Constituição com os olhos voltados à governabilidade. Como se a governabilidade se sobrepusesse à lei fundamental. A lei fundamental está no ápice da pirâmide dos valores nacionais. Ela tem de prevalecer.
Não é papel do Supremo se preocupar com a governabilidade?
A premissa é de que ele viabiliza a governabilidade tornando prevalecente a lei fundamental. Se para o êxito de uma política governamental tiver de fechar o livrinho (a Constituição), o STF não pode fazê-lo.
Qual é sua opinião sobre a atual proximidade entre os chefes do Executivo e do Judiciário?
O diálogo deve haver. A comunicação deve haver. Mas cada um atuando em sua área. E preservando sua autonomia.
O TSE deveria reexaminar a interpretação que permite a juízes e integrantes do Ministério Público candidatos ficarem nos cargos até seis meses antes da eleição?
Isso resultou de uma construção jurisprudencial. Não está em lei alguma. Creio que ninguém se atreve, principalmente no período crítico de ano que antecede as eleições, a modificar esse enfoque.
Mas não seria mais democrático se, como qualquer candidato, eles tivessem de se filiar um ano antes da eleição e deixar seus cargos?
O tratamento igualitário é sempre desejável. Quando há tratamento diverso, qual é a idéia que ocorre? É que há um privilégio. Todo privilégio é odioso.
2006 será mais difícil que 2004?
Temos um ano difícil porque estamos num período de transição. A imprensa está atuando, escancarando mazelas que antes eram varridas para debaixo do tapete. O Ministério Público também. Estamos numa quadra de rigor. Evidentemente, a Justiça Eleitoral será rigorosa. O resultado das urnas é importante. Mas mais importante é saber como se chegou a ele. Se foi mediante o uso da máquina administrativa há desvio de conduta e a glosa será uma decorrência natural.
Como o juiz deve atuar na fiscalização da eleição?
O juiz não deve ser algoz. Mas não deve passar a mão na cabeça de quem teve procedimento à margem do figurino legal.
O senhor acompanha a discussão do projeto que tramita no Congresso para inibir o uso do caixa 2?
Sim. Mas já estamos na fase crítica de um ano, na qual não pode haver mudança. É positivo desde que aplicável às eleições futuras. Não às de 2006. O problema de custeio de campanha é seriíssimo, porque teremos sempre o pulo do gato. A coisa se faz de forma escamoteada. É o caixa 2.
O senhor acha, então, que não há como acabar com o caixa 2?
A cadeira elétrica acabou com o crime nos Estados que têm a pena de morte? Não. Onde o homem bota a mão é sempre possível o desvirtuamento. É claro que precisamos ter uma legislação um pouco mais rigorosa e instituições que façam as normas serem observadas. Mas toda vez que se age com rigor as pessoas ficam mais espertas no passo seguinte.
A antecedência mínima de um ano não vale para a Justiça? Em 2002, o TSE impôs a verticalização das coligações praticamente às vésperas da eleição. O presidente do tribunal na época era Jobim.
Houve uma ação direta de inconstitucionalidade (no STF), sustentando que o TSE teria, em substituição ao Congresso, legislado. Eu votei por abrir o embrulho, admitindo a ação. O Brasil é um país continental. As forças políticas do Rio não são as de Rondônia, do Acre. E, tanto quanto possível, se há margem para homenagear a liberdade, a liberdade de coligar-se, deve homenagear. No Brasil não temos partidos com programas definidos, que devam ser respeitados em todas as 27 unidades da Federação. Nós imaginávamos que havia um partido com programa definido, idéias próprias, e parece que nem havia esse partido.
O presidente Lula enfrenta no TSE acusações do PSDB de suposta propaganda eleitoral antecipada.
É. Há pouco, fui relator de um processo, no qual ele foi multado. Em horário nobre, a pretexto de fazer propaganda institucional, fez uma propaganda visando ao passo que será dado no sentido da reeleição. Não somos ingênuos. Não acreditamos mais em Papai Noel.
Então o senhor já tem certeza que ele será candidato à reeleição?
Imagino que sim. Isso se percebe quando ele deixa o script e passa para o improviso.
Em 2002, o senhor dizia que gostava de frutos do mar, indicando que votaria em Lula. E agora?
Confesso que estou um pouco enjoado de frutos do mar.
Acha que Lula será multado no julgamento das ações do PSDB?
Acho que há um precedente. O TSE sinalizou que seria rigoroso quanto à propaganda extemporânea. A propaganda deve ocorrer a partir de 5 de julho.
Com base nesse precedente, alguém poderia entrar com representação contra Jobim?
Não sei. Porque o presidente do Supremo diz que não é pré-candidato. Ele anunciou que já está chegando ao término do trabalho no Supremo. Se sairá para a advocacia ou para a política, não sei. Agora, leio e ouço que sairá para a política.
Marqueteiros de campanhas foram acusados de evasão de divisas e sonegação. Isso é um caso de Justiça Eleitoral ou criminal?
Quanto a procedimentos anteriores, que não estejam ligados às eleições, temos algo que deve ser visto pelo Ministério Público e pela própria polícia. O que nós devemos notar é o que foi feito em termos de eleições.
Há exagero nessas campanhas?
Sem dúvida há uma exorbitância quando se potencializa não o perfil, o programa, mas a necessidade de sensibilizar a todo custo o eleitor.
Os marqueteiros serão uma preocupação da Justiça Eleitoral?
Talvez não estejam com a guarda tão ativa quanto à a necessidade de evitar a glosa. Por isso talvez tenhamos surpresas quanto à atuação do Judiciário, que estará mais vigilante que nos anos anteriores.
Depois dessa crise a sociedade vai ficar mais vigilante?
Vai. É o aspecto positivo. Os dias são alvissareiros.
O senhor espera um aumento de votos nulos por causa da crise?
Espero que não. O verdadeiro protesto está em não dar o voto àqueles que realmente não mereçam. A tendência, quando há decepção, é de partir para o protesto, para o voto nulo. Mas isso não é bom.
Revista Consultor Jurídico, 5 de fevereiro de 2006