Ministro Marco Aurélio não votou a favor do nepotismo

Poder de desinformar

Ministro Marco Aurélio não votou a favor do nepotismo

por Rodrigo Haidar

 

O Supremo Tribunal Federal decidiu nesta quinta-feira (16/2) que o Conselho Nacional de Justiça tem poder normativo. A decisão, liminar, foi tomada no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade ajuizada em favor da Resolução 7 do Conselho, que regulamenta a proibição do nepotismo no Poder Judiciário.

 

Nove dos dez ministros presentes à sessão votaram pela constitucionalidade da resolução. Ou seja, a favor do poder de o CNJ regulamentar a questão. Ponto. O foco realmente importante da decisão é a afirmação do poder regulamentar do CNJ sobre os tribunais estaduais.

 

Parte da imprensa, contudo, vinha acompanhando o assunto como se estivesse sendo travada uma batalha entre mocinhos e bandidos — anti-nepotistas e nepotistas. Em conseqüência, parte do noticiário, ao tratar do voto dissidente do ministro Marco Aurélio no julgamento, abordou o assunto como se o que estivesse em discussão não fosse um princípio (poder normativo do CNJ), e sim uma posição moral (a favor ou contra o nepotismo).

 

Mais do que empobrecer a discussão, tal tratamento desinforma e causa injustiças. O que estava em discussão não era o nepotismo, mas sim os limites das atribuições do CNJ. Por entender que o CNJ não tem poder normativo, o ministro Marco Aurélio acabou apontado como “defensor do nepotismo”.

 

Para o ministro, ao regulamentar a questão, o Conselho estaria invadindo a esfera do Congresso Nacional e tratando de assuntos que fogem à sua competência. “O CNJ, ao editar a Resolução, o fez totalmente à margem das atribuições previstas na Constituição Federal, e não vejo possibilidade de se deferir uma liminar que acaba potencializando a Resolução do próprio Conselho”, sustentou.

 

Os nove outros ministros discordaram desse entendimento. Por isso, os tribunais terão de seguir normas baixadas pelo CNJ — tanto a que diz respeito à contratação sem concurso de parentes de juizes, quanto as que estabelecem regras para a promoção e concurso de juízes, e a que proíbe férias coletivas no Judiciário. A questão em pauta, portanto, não era nepotismo sim ou não.

 

Antes do CNJ

 

Já em 1997, Marco Aurélio se manifestou sobre a questão do nepotismo e defendeu o combate a tal prática. Ao julgar uma ação (ADI 1.521) contra Emenda à Constituição do Rio Grande do Sul que proibiu a contratação de parentes, o ministro negou liminar para suspender a norma.

 

Na ocasião, sobre a emenda anti-nepotismo, o ministro afirmou: “A vedação de contratação de parentes para cargos comissionados — por sinal a abranger, na espécie, apenas os cônjuges, companheiros e parentes consangüíneos, afins ou por adoção até o segundo grau (pais, filhos e irmãos) — a fim de prestarem serviços justamente onde o integrante familiar despontou e assumiu cargo de grande prestígio, mostra-se como procedimento inibidor da prática de atos da maior repercussão. Cuida-se, portanto, de matéria que se revela merecedora de tratamento jurídico único — artigo 39 da Carta de 1988, a abranger os três Poderes, o Executivo, o Judiciário e o Legislativo, deixando-se de ter a admissão de servidores públicos conforme a maior ou menor fidelidade do Poder aos princípios básicos decorrentes da Constituição Federal”.

 

Na ocasião, o ministro frisou que a iniciativa gaúcha saltava aos olhos como “reflexo, como sinal dos novos ares do atual momento brasileiro”. E afirmou, ainda, que a emenda gaúcha cuidava de “evitar facilidades óbvias, bem ao gosto das medidas profiláticas”.

 

Segundo Marco Aurélio, no mesmo voto, “quem merece não precisa de favores: quem faz por onde insiste, faz questão de demonstrar a que veio, num ritual típico da vaidade humana, buscando cargos elevados em entidades públicas onde parente próximo não possui influência maior”.

 

Leia a primeira parte do voto do ministro na ocasião

 

12/03/1997

TRIBUNAL PLENO

 

MED. CAUT. EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 1.521-4 RIO GRANDE DO SUL

 

V O T O

 

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR)- Tênues têm sido as iniciativas objetivando coibir abusos notados no preenchimento de cargos em comissão: por vezes, são parentes de autoridades do primeiro escalão que efetuam concurso público para ocupação de cargos de menor importância, inclusive os situados na base da pirâmide hierárquica, para, a seguir, à mercê de apadrinhamento revelador de nepotismo, chegarem a cargos de maior ascendência, quer sob o ângulo da atividade desenvolvida, quer considerada a remuneração; outras vezes, ocorre a nomeação direta para o cargo em comissão, surgindo, com isso, em detrimento do quadro funcional que prestou concurso, aqueles que se diferenciam, em dose elevada, pelo chamado “QI” (sigla irônica que resume a expressão “quem indica”). A origem dessa situação é remota, com raízes fincadas no período da colonização. A par desse aspecto, tem-se ainda o desvirtuamento das próprias funções, de vez não raro dá-se a investidura para o exercício de funções que, na realidade, não se fazem compatíveis com a nomeação para cargos em comissão.

 

A Carta de 1988 homenageia, com tintas fortes, o princípio isonômico. Além da regra geral do artigo 5º, tem-se ainda a específica, reveladora de que os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, devendo a investidura, excetuada a hipótese de cargo em comissão assim declarado em lei, ser precedida do concurso público de provas e de provas e títulos. A cultura brasileira conduziu o Constituinte de 1988 a inserir, relativamente à administração pública direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes, na abertura do capítulo próprio (Da Administração Pública), a obrigatória observância aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. Inegavelmente, o Constituinte voltou-se para o campo pedagógico, atento à realidade nacional, quantas e quantas vezes eivada de distorções.

 

A apreciação da liminar buscada pela Procuradoria Geral da República, no que se mostrou sensível ao inconformismo daqueles que representaram objetivando o ajuizamento desta ação direta de inconstitucionalidade, não pode resultar no deferimento com a extensão pleiteada, a menos que se olvide o grande sistema em que se consubstancia a Carta vigente, com o afastamento dos princípios explícitos e implícitos nela contidos, da extravagância notada no serviço público quando, até mesmo diante de vencimentos achatados, busca-se compensação via a chamada “renda familiar”.

 

Senhor Presidente, embora sem querer enveredar os caminhos do moralismo barato, pondero ser necessária uma reflexão mais profunda sobre o sentido ético que lastreia normas deste quilate. As primeiras perguntas a serem feitas dizem com a razão de ser e o momento em que vêm à balha proposições normativas como a examinada. Pois bem, não há mesmo como olvidar as radicais transformações por que passa o Brasil. Colhemos os frutos benfazejos da democracia madura. E esperamos muito tempo por isso. O povo brasileiro já não tateia, mergulhado nas trevas da ignorância e conseqüente subserviência, em busca da mão ditadora e assistencialista. Procura, sim, firmeza na condução da nau, sem despotismo, porém. O brasileiro de hoje não mais implora pelo seus naturais direitos, exige-os.

 

É esse o contexto no qual exsurgem as leis que, em última instância, indo ao encontro do anseio popular pela afirmação definitiva da moralidade como princípio norteador das instituições públicas, atuam como diques à contenção da ancestral ambição humana. A um só tempo, mediante normas desse feitio, presta-se homenagem à justiça, na mais basilar acepção do termo, permitindo-se a quem de direito alcançar o patamar pelo qual pagou o preço do esforço, da dedicação e da competência. Por outro lado, usando da cartilha dos diletantes do Neoliberalismo, tão em voga nas altas esferas dirigentes do País, cabe lembrar que o mérito é a formula eficiente para chegar-se à qualidade total desejada aos serviços públicos, ditos essenciais. Ora, como é possível compatibilizar tais assertivas com a possibilidade de nomeação de parentes próximos para ocupar importantes – e até estratégicos – cargos de direção nas repartições públicas comandadas pelo protetor?

 

Ressalvo que de modo algum estou a menosprezar a capacidade desse ou daquele indicado. A ênfase é outra: cuida-se aqui de evitar facilidades óbvias, bem ao gosto das medidas profiláticas. Até porque quem merece não precisa de favores: quem faz por onde insiste, faz questão de demonstrar a que veio, num ritual típico da vaidade humana, buscando cargos elevados em entidades públicas onde parente próximo não possui influência maior.

 

A partir dessas premissas, analiso as matérias evocadas pela ordem natural que ocupam no cenário jurídico. Principio, assim, pelo alegado vício de forma, lançando idéias que nortearão a abordagem relativa às diversas disposições atacadas.

 

Ao primeiro exame, a norma insculpida no § 1º do artigo 61 da Carta Federal, mais precisamente na alínea “a” do inciso II, há que ter alcance perquirido sem apego exacerbado à literalidade. É certo que são da iniciativa privativa do Presidente da República as leis que disponham sobre criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, ou aumento de sua remuneração, exsurgindo do artigo 96, inciso I, alínea “b”, regra semelhante abrangendo o Judiciário e, em relação ao Ministério Público, o disposto no § 2º do artigo 127, também em idêntico sentido, ou seja, versando, de um modo geral, sobre a iniciativa própria para a criação de cargos e correlatas disciplinas. Evidentemente, está-se diante de preceitos jungidos à atividade normativa ordinária, não alcançando o campo constitucional, porquanto envolvidos aqui interesses do Estado de envergadura maior e, acima de tudo, da necessidade de se ter, no tocante a certas matérias, trato abrangente a alcançar, indistintamente, os três Poderes da República. Assim o é quanto ao tema em discussão. Com a Emenda Constitucional nº 12 à Carta do Rio Grande do Sul, rendeu-se homenagem aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da isonomia e do concurso público obrigatório, em sua acepção maior. Enfim, atuou-se na preservação da própria res pública. A vedação de contratação de parentes para cargos comissionados – por sinal a abranger, na espécie, apenas os cônjuges, companheiros e parentes consangüíneos, afins ou por adoção até o segundo grau (pais, filhos e irmãos) – a fim de prestarem serviços justamente onde o integrante familiar despontou e assumiu cargo de grande prestígio, mostra-se como procedimento inibidor da prática de atos da maior repercussão. Cuida-se, portanto, de matéria que se revela merecedora de tratamento jurídico único – artigo 39 da Carta de 1988, a abranger os três Poderes, o Executivo, o Judiciário e o Legislativo, deixando-se de ter a admissão de servidores públicos conforme a maior ou menor fidelidade do Poder aos princípios básicos decorrentes da Constituição Federal. Digo mesmo que a iniciativa do Estado do Rio Grande do Sul salta aos olhos como reflexo, como sinal dos novos ares do atual momento brasileiro, angariando simpatia suficiente a que seja dada à questão tratamento linear, a abranger, no campo da proibição, atos que, em última análise, em visão desassombrada, decorram da atuação apaixonada, direta ou indireta, do Governador, do Vice-Governador, do Procurador-Geral do Estado, do Defensor Público Geral do Estado e dos Secretários de Estado, ou titulares de cargos que lhes sejam equiparados no âmbito da administração direta do Poder Executivo; dos Desembargadores e Juízes de Segundo Grau, no âmbito do Poder Judiciário; dos Deputados Estaduais, no âmbito da Assembléia Legislativa; dos Procuradores de Justiça, no âmbito da Procuradoria-Geral de Justiça; dos Conselheiros e Auditores Substitutos de Conselheiros, no âmbito do Tribunal de Contas do Estado; dos Presidentes, Diretores-Gerais, ou titulares de cargos equivalentes, e dos Vice-Presidentes ou equivalentes, no âmbito da respectiva autarquia, fundação instituída ou mantida pelo poder público, empresa pública ou sociedade de economia mista. Depreende-se do texto do artigo 1º, § 5º, da Emenda Constitucional nº 12, de 13 de dezembro de 1995, que, na espécie, dispôs-se de forma setorizada, afastando-se apenas a nomeação dos citados parentes nas áreas de influência das autoridades mencionadas. Aliás, cabe aqui o registro de uma curiosidade. Ao que parece, tudo teve início com sugestão de emenda constitucional oriunda do próprio Judiciário do Rio Grande do Sul, que tenho como um dos melhores do País. De acordo com aquela proposta, chegar-se-ia a alcançar a vedação no tocante “não só o Poder, órgão ou serviço a que pertençam os titulares referidos, em atividade ou afastados há menos de cinco anos, mas todos os Poderes, órgãos ou serviços mencionados no artigo anterior”. Em síntese, consoante o embrião da Emenda, não se teria a possibilidade da chamada troca de nomeações entre dirigentes de órgãos, mera cortina visando a afastar a evidência da transgressão aos princípios isonômico, da moralidade e da impessoalidade. Ademais, a proibição estendia-se até o terceiro grau. Todavia, cogitava-se somente da impossibilidade de nomeações, abrindo-se brecha assim à confortável interpretação de que a eficácia da norma seria para o futuro, não alcançando aqueles que já estivessem prestando serviços e, portanto, não abrangendo o próprio exercício. Por hora, no campo próprio reservado ao Supremo Tribunal Federal, ou seja, no julgamento das ações direta de inconstitucionalidade, quando se tem o aspecto político-constitucional como da maior relevância, é suficiente dizer-se que o tema tratado é merecedor da inserção na Lei Maior do Estado, porque implícitas as diretrizes básicas da Carta Federal. Se de um lado não consta desta preceito semelhante, de outro compõe um grande todo que, interpretado, é conducente a concluir-se, ao menos neste primeiro exame, pela ausência de incompatibilidade. Sob o prisma da forma, com algumas pinceladas quanto ao fundo, e ressaltando, mais uma vez, o passo que foi dado pelo Estado do Rio Grande do Sul a repercutir, quem sabe, além das respectivas fronteiras geográficas, tenho que não cabe deferir a liminar.

Revista Consultor Jurídico, 17 de fevereiro de 2006