MORTES NA BASE AÉREA: “Eles sabem de tudo” Cláudio Ribeiro e Demitri Túlio
da Redação

 

[07 Março 02h49min 2006]

A Base Aérea de Fortaleza já saberia o nome de quem matou os soldados Cleoman Fontenele Filho e Robson Mendonça. A certeza é das mães dos dois militares, Fátima Fontenele, 53, e Imaculada Mendonça, 42. Cleoman e Robson foram encontrados mortos no início da noite do dia 10 de setembro de 2004, em um alojamento dentro da Base, cada um com um tiro na cabeça. Passado um ano e seis meses, e depois que se lançou até a versão (mais frágil) de homicídio seguido de suicídio, a autoria do suposto duplo homicídio é um mistério até hoje. Pela tese das mães, haveria “gente importante” por trás do crime e o culpado (ou mais de um) já seria conhecido nos bastidores da unidade militar.

Em entrevista exclusiva ao O POVO, as mães revelam que o então diretor técnico-científico da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), Francisco Simão, teria procurado as duas para dar detalhes sobre as mortes. “Seu filho foi morto de joelhos. Olhando para o assassino. E não foi morto lá dentro (do alojamento). Foi morto lá fora e arrastado pra dentro”, teria contado o legista para Imaculada, mãe de Robson. Fátima, mãe de Cleoman, também confirmou ter sido procurada pelo médico, que pediu afastamento do cargo no final do mês passado em função de sua candidatura a deputado estadual. O legista confirmou o encontro com as duas famílias.

Outra revelação: segundo as mães, três policiais militares faziam motopatrulhamento nas proximidades da Base Aérea no dia das mortes e um deles teria sido uma das primeiras pessoas a chegar ao local onde estavam os corpos. Teria chegado antes mesmo da perícia. O PM seria uma testemunha ainda não ouvida no inquérito e poderia ter informações ainda não exploradas nas investigações.

Na semana anterior ao Carnaval, as duas mães se encontraram para uma conversa com O POVO na casa da comerciante Imaculada Mendonça, em Maracanaú (Região Metropolitana de Fortaleza). Como cenário para a entrevista, aos pés de uma imagem de Nossa Senhora das Graças, um relicário construído na garagem em memória do filho Robson. No meio das lembranças, 11 peças de roupas, entre fardas e camisas esportes, um sapato e uma foto do tempo de criança, o último sabonete usado pelo soldado, pasta e escova de dente, a bicicleta pendurada no caibro, a cama e o lençol ainda marcado pelo sangue. “Isso pra mim não é sofrimento, não. Se eu for me desligar de cada coisa dele, eu tô me desligando dele. Minha vida acabou no momento que perdi meu filho”, diz Imaculada.

Aparentemente mais serena, a professora universitária Fátima Fontenele revela que desde a morte de Cleoman tenta se voltar mais para o cotidiano dos outros quatro filhos e de um neto, Pedro Lucas, recém-chegado. “Às vezes me culpo por não ter acompanhado de perto o Cleoman Filho, mas tento não paralisar minha vida”, confidencia. Leia a seguir trechos da entrevista, que também teve a participação do padrasto de Robson, Robério Bertoldo.


O POVO – As senhoras acreditam que esse caso ainda será desvendado e o culpado descoberto?
Imaculada Mendonça – Eu acredito.
Fátima Fontenele – Eu acredito também. Acredito que passe o tempo que passar, eles vão conseguir descobrir. De primeiro, eu escutava a história “ah, pode passar cinco, dez anos”, mas tudo bem. A minha crença é que a gente vai conseguir saber quem foi. O que eu quero e minha família toda quer é que quem matou, seja um, dois ou três, que eles digam o porquê. Porque mataram dois jovens, qual foi o motivo real disso. A gente sempre realmente especula o que pode ter ocorrido. Mesmo assim, até hoje, apesar de todas as conversas, ainda tem muita coisa para explicar. As falhas que existem dentro do inquérito militar são horríveis, clamorosas. A gente não tem resposta. Eu vi o final do laudo do perito que veio de Brasília, ele encerra dizendo que mostra tudo que ocorreu. Como se dissesse que está fechado e não tem mais o que se fazer. Como se dissesse que não é para contestar e é para contestar. Disse a posição que meu filho estava, a posição que o Robson estava e no final do beliche tem sangue. Ele não explicou porque no final do beliche tem sangue. De qual foi aquele sangue? Era para ele ter dito.

OP – No final do beliche tinha sangue?
Fátima – É. No final do beliche, na parte dos pés, no contrário de onde estava meu filho,tem sangue também. Eu vi numa foto que está no inquérito. O promotor disse “a posição do Fontenele era essa, do Mendonça era essa”. Tem sangue no final do beliche. Isso o perito não respondeu.
Imaculada – Na verdade, aquele perito não disse nada. Ele fez um cenário total ali, como se estivesse vendo tudo. Assisti na televisão e não estava acreditando quando ele disse que meu filho tinha matado o Cleoman. Fiquei em pânico aqui, porque da maneira que ele falou, que foi um auto-extermínio, a pessoa que ele apontou ali foi um monstro. Fiquei revoltada. Tenho certeza absoluta que meu filho não fez isso nem o dela (Fátima). Digo a mesma coisa que ela. Não acredito que dois jovens que tenham sonhos, porque o meu tinha sonhos, desde criança, de entrar naquilo ali (Base Aérea). Mas não sabia que aquilo era horrível daquele jeito. Quinta-feira (16/2), quando fui dar o depoimento (na Procuradoria da República no Ceará), tem uma pessoa que vai ser chamada e era da turma deles.
Fátima – O que nós sabemos de concreto disso? Não sabemos nada. Estamos ouvindo as pessoas dizerem que aconteceu isso ou aquilo. Será que novamente não é a corporação tentando desviar o assunto principal, que é a morte dos nossos filhos. Que sempre acreditei que era alguma coisa relacionada a roubo de armas ou drogas e eles não querem que seja isso. Lógico que não querem. Não querem sofrer uma investigação lá dentro, essa é a minha opinião. De outro lado investigando a vida deles. Por isso digo que até que o assassino apareça e diga que foi ele, fico sempre naquela dúvida de é ou não é. Quero elogiar o trabalho feito pela Promotoria Militar. Acho que eles realmente têm tentado fazer alguma coisa. E agora com a ajuda do procurador Alexandre Meireles. Como ele disse, não é uma investigação paralela, “quero fazer uma tentativa de realmente ajudar o promotor Alexandre Saraiva, porque depois de mais de um ano lendo-se o inquérito você não consegue nada de substancial, não tem uma coisa palpável”. Até uma informação que saiu no jornal, o que tem a ver o livro das despesas do padre na capela com isso? Qual é a ligação? Não quero nem ficar colocando o padre nessa história. Tudo bem, é uma linha de investigação. Desde o dia que eu soube, eu disse sou uma cristã praticante, mas principalmente por isso eu quero saber a verdade e descobrir o porquê dessa história toda. Mas não quero que pegue um para bode expiatório e diga “ah, foi ele” e pronto, arquiva tudo e a gente nunca vai saber realmente o que aconteceu.

OP – As senhoras acreditam que a Base obstaculariza?
Fátima – Eu acho que sim. Uma das coisas que o Alexandre Meireles falou pra mim é que a ação dele chamando outras pessoas é para ver quem está obstruindo, quem está escondendo informação a respeito disso. Eu disse: “E se você descobrir? Se conseguir alguém para depor e descobre alguma coisa, você tem poder de prender?” Ele disse não tenho, mas posso denunciar. “Comunico ao Alexandre Saraiva para ele prender. Minha posição aqui é de que um funcionário público não pode esconder informações, mesmo que ele não saiba de nada. Essa ação dele, de improbidade, ele vai responder por ela. E é passível de ser colocado para fora do emprego se esconder informações”. Acho que a Base obstruiu muita coisa, esconde as coisas através das pessoas que estão ali dentro. Tanto eu como a Imaculada, principalmente ela. Muita gente vinha falar com ela. Depois é “não posso falar, não posso dizer nada”. A carta anônima que recebemos, que foi depositada na caixa postal da minha mãe, a pessoa que digitou diz “nós todos fomos obrigados a dizer que não sabemos de nada e não vimos nada”. É pra todo mundo ficar calado. Eu tenho a carta anônima.

OP – A carta diz mais o quê?
Fátima – Diz que a pessoa é de lá, que está doida para sair de lá, que não aguenta mais aquela corporação, que é muita falsidade. Até disse para o procurador, que ele denuncia um sargento que naquele dia estava usando luvas. Mande investigar esse sargento, mas não diz o nome do sargento. Disse para o Alexandre, ele mandou investigar algumas pessoas, acho que inclusive um sargento que não sei quem é. Mas não sei se esse que ele mandou investigar era o que estava usando luva.
Imaculada – O mais impressionante é que o doutor Simão (legista, recém-saído da diretoria técnico-científico da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social) deu um laudo lá dizendo que tudo deu negativo. Como esse menino fez tudo isso? Depois de morto tirou as luvas e jogou? Não tem vestígio nenhum. Três tiros. Nenhum vestígio de pólvora.
Fátima – Imaculada, a Base pode até não admitir, até agora, que nossos filhos foram mortos. Mas só com essa história da violação, já está praticamente dito que houve dois homicídios ali dentro. O que quero é que eles digam: “eles foram mortos aqui dentro”.

OP – A senhora falou sobre um suposto desvio de material ou entrada de drogas. Os filhos de vocês haviam comentado alguma vez sobre isso em casa? Falavam de coisas de dentro da Base, de situações desse tipo? Falaram que estariam com depoimentos marcados lá dentro da Base?
Fátima – Meu filho nunca comentou isso.
Imaculada – A gente só ouviu esse comentário depois da morte deles, de que uma semana depois eles iriam depor. Mas não sei de quê, por quê.
Fátima – Perguntei isso ao Alexandre Saraiva, ele disse que não, que tinha investigado isso.
Imaculada – Eu não conhecia a Fátima nem ela me conhecia. Nos conhecemos nessa circunstância triste. Os amigos mais próximos dele de lá, eu perguntava. É tanto que hoje eles não falam comigo. Até se escondem de mim. Fico triste com isso. Eu nem queria perguntar para eles quem era o criminoso. Só perguntava como era meu filho lá na Base. Dentro de casa nosso filho é uma coisa, do lado de fora muda de comportamento, né? Minha expectativa era grande. Quando eles falavam dele lá, não era novidade pra mim. Era o mesmo que era aqui. E eu perguntava qual era a relação do Robson com o Cleoman. Eles diziam que era de “oi, bom dia e pronto”. Ele não tinha um vínculo de amizade forte com ele. Amizade nenhuma. E nunca tinha tirado serviço com ele. Tinha sido a primeira vez.
Fátima – Descobrimos um caderno do Cleoman Filho em que ele anotava “hoje vou tirar serviço com fulano”. Foi a única vez que ele foi dar serviço com o Robson.

OP – Por que vocês acham que seus filhos foram mortos? Foi uma coisa aparentemente sem motivo ou tem uma explicação lógica, de algo maior, que eles teriam visto ou soubessem?
Imaculada – Eu tenho é certeza, coração de mãe, que tem um motivo. Ele nunca comentou nada.

OP – Mas pelo que vocês já receberam de informações, pelo que têm convivido de especulações e cruzando esses dados, acham que tem alguma coisa que explica a morte deles? A morte estaria ligada a determinada pessoa que tivesse alguma culpa ou foi algo por acaso?
Imaculada – Um deles sabia de alguma coisa, ouviu ou viu. Não sei se o meu ou o da Fátima, mas um deles dois sabia.
Fátima – Eu também quero acreditar nisso. Acho que tirar a vida de dois rapazes num posto isolado daquele, depois da gente pensar isso, cruzar todas as informações, saber que os meninos foram colocados num posto daqueles, saber que eles nem tinham uma certa amizade nem entrosamento, e serem mortos desse jeito. Até com essa colocação da Base, para desviar. Porque acho que a informação que a Base deu, embora depois o comandante tenha dito que foi uma informação precipitada, mas essa intenção que para mim ele teve, de desviar o motivo real, eu acredito sim, que tem um motivo real. Eu tenho que acreditar nisso para pensar pelo menos “meu Deus, porque se tira a vida de dois jovens desse jeito?”. A gente pensa num motivo banal. É banal quando não tem nada a ver com você, mas para o assassino não foi um motivo banal. Ele teve um motivo, para ele sério, que quando eu souber tenho que entender que esse motivo foi sério, seria uma coisa que justificasse isso. O próprio comandante fez uma pergunta desse tipo para nós. “Você sabe dizer se o filho de vocês foi chamado para alguma coisa? Para participar de uma festinha, assim, assado?” Do mesmo jeito que nossos filhos podiam ter sido chamados para uma festinha, que não era uma festinha muito legal, podiam também ter sido chamados para fazer uma coisa que também não era muito honesta.

OP – Qual foi o comandante que perguntou?
Fátima – Comandante Batista. Ele falou desse jeito, “uma festinha dentro da Base”. Na hora até dissemos, “o senhor pode perguntar o que quiser”. Porque já tinhamos pensado em todas as possibilidades. Que motivo foi esse que levou alguém a matar dois rapazes. Aí a gente fica nessa situação. Será que foi meu filho ou foi o da Imaculada que ouviu alguma coisa? Um deles foi chamado para participar de alguma coisa e recusou, e por que o outro estava perto também levou? Quero acreditar que existe realmente um motivo.
Imaculada – Não é porque aquele perito veio lá de onde estava dizer que o meu matou o outro, não. Eu estaria falando a mesma coisa se tivesse sido o dela. É uma certeza muito grande dentro de mim que isso não foi casual, não foi brincadeira de jovem, porque o meu não gostava desse tipo de brincadeira. Nunca um filho meu usou uma arma nem de brinquedo, porque tenho pavor a arma. Não gosto nem que meus filhos assistam a filme de bang-bang. Brincadeira de um mirar a testa do outro? Que brincadeira é essa? Não criei filho desequilibrado. Se ele tivesse problema mental, a Base teria contestado. Não teria nem entrado. Era um menino correto, sério, não gostava de brincadeira. Mesmo porque lá ele tinha muito medo. Nunca falava o nome das pessoas de lá. Às vezes eu perguntava que horas podia ligar, me dê um telefone. “Não pode, mãe. Vou ser chamado atenção”. Quando eu ligava para o celular dele, era depois das dez quando ele já estava deitado. Ele tinha sonhos de subir lá dentro. É tanto que ele dizia “mãe, minha vida vai melhorar porque vou fazer prova para sargento em janeiro. A senhora sabe que eu vou passar”. Isso para mim foi premeditado. A prova é tão grande que por que não ficou rastros? A culpa ficou com os meninos. Aí ficam jogando a culpa que nossos meninos eram desequilibrados. No dia que foram fazer a exumação do corpo de meu filho, um militar chegou para minha irmã e disse “senhora, vá atrás”. Porque lá eles dizem tá morto, não pode falar. Morto não fala. Mas nós estamos vivas para falar. Pode passar dez anos mas eu ainda vou ver a verdade. Tenho certeza que tem gente grande por trás disso. Não é coisinha pequena, é patente alta.

OP – A senhora não tem medo da cilada da teoria da conspiração? De estar movida pelo sentimento de mãe, da ferida emocional, só enxergar a história errada e não filtrar algumas coisas?
Imaculada – Você acha que eu como mãe só estou enxergando um lado? Não. Sabe por quê? Eu não ia falar, mas você mexeu com meus sentimentos. Vou falar. Tem um rapaz, um PM, ele foi o primeiro a entrar na Base Aérea (a chegar ao local das mortes). Antes da chegada da perícia. Esse rapaz chegou lá, meu filho estava com o telefone na mão. Como meu filho poderia estar com o telefone, se quem estava falando ao telefone com a namorada era o Cleoman? O Robson estava com o telefone na mão e o fone (rádio) na outra. Como ele matou o colega? E como ele estava com esse telefone se o Cleoman é que falava com a namorada e ela ouviu o estampido?

OP – Quem deu essa descrição do local foi o PM?
Imaculada – Foi o PM. O celular do Robson estava em casa. Não é só um, não. São três PMs. Estavam tirando serviço lá perto, na esquina. Houve o rebuliço lá e eles, como policiais, tiveram acesso e entraram.

OP – Os PMs entraram após o barulho de tiro?
Imaculada – Quando ouviram helicóptero, gritos, dizendo que o assassino estava solto, que houve aquele rebuliço lá dentro, eles entraram. Nem perguntaram.

OP – Eles estavam numa viatura?
Fátima – Estavam de moto.
Imaculada – Eu até falei isso para o comandante. E ele quis me dizer que nenhum PM pode entrar ali. Pode sim. Não tem lá dentro o Ciopaer (Centro Integrado de Operações Aéreas)? Não fica lá? Agora não pode entrar, não.

OP – Esses PMs teriam sido as primeiras testemunhas da cena do crime?
Imaculada – É isso que estou dizendo. Não é só isso. É uma pena que esses meninos que continuam lá dentro, os outros, têm medo de tudo. Eles são chamados lá de soldadinhos.
Fátima – Foi o que o oficial disse no dia da festa, no sábado. O corpo do Robson estava enterrado e do meu filho sendo velado. Teve uma festa no Clube dos Oficiais. O sargento que estava organizando quis interromper a festa, chamou o oficial do dia, no sábado, e disse “tenente, não é melhor a gente suspender a festa. Dois soldados foram mortos?”. “Quem foi morto? Aqueles dois soldadinhos?”. Foi isso que o tenente disse. Não interessa quem é. São só dois soldadinhos. Quer dizer: é descartável, pode matar quantos quiserem.
Imaculada – E nós estamos sofrendo até hoje porque são dois soldadinhos, para eles. Mas para mim meu filho tem muito valor.
Fátima – Isso está numa gravação telefônica. Ligaram para meu irmão. Ele disse “sou daqui da Base, tô ligando de um telefone fixo…” e disse tudinho.
Imaculada – E não é só isso. Por causa de telefonemas, de pessoas que comentam lá de dentro. Pessoas que foram tirar serviço lá (no local das mortes), que não era para ter tirado serviço, porque tudo lá foi errado. Essa pessoa falou que tudo do lado de fora estava sujo de sangue. Como estava sujo de sangue se esses meninos estavam do lado de dentro, trancados?
Fátima – Meu irmão, que é médico, também diz isso. Ele diz que tinha sangue do lado de fora do alojamento.
Imaculada – Logo que aconteceu, os meninos (outros soldados) ficaram em pânico e falaram alguma coisa. Hoje eles não falam mais. Hoje eles têm medo. Mas esse rapaz que falou era colega dele e disse que lá fora estava tudo sujo de sangue. E o doutor Simão… o maior erro da minha vida foi não ter gravado tudo que aquele homem disse aqui na minha casa. Assim como o perito fez o cenário dele, doutor Simão fez o cenário dele aqui na minha casa. Perguntou qual era a altura do meu filho. “Seu filho foi morto de joelho”, disse desse jeito. “Olhando para o assassino. E seu filho não foi morto lá dentro. Foi morto lá fora e arrastado pra dentro”. Doutor Simão disse aqui, eu tenho várias testemunhas. Tava minha família em peso aqui quando ele disse isso. O carro dele ficou lá na esquina, porque ele não queria chamar atenção e não queria que ninguém soubesse que ele tinha vindo na minha casa nem na casa dela (Fátima). Falou nessas palavras.
Fátima – Ele não teve coragem de escrever isso no papel. No papel, ele concordou com o laudo do perito, que foi outro médico. Ele apenas assinou como diretor, mas ele é diretor, leu o laudo e foi pressionado para não dizer. “É para sair isso aí”, e saiu o que ele disse.
Imaculada – É isso que faz a gente lutar cada vez mais. Porque se o capitão Reginaldo tivesse chegado aqui na minha casa…

OP – Quem é o capitão Reginaldo?
Imaculada – É de lá. Chegar aqui na minha casa, da forma que ele veio, dizer que o Cleoman tinha matado meu filho. Na hora, juro, não fiquei com ódio do Cleoman porque não fiquei mais em mim. Fui saber de meu filho morto na quinta-feira, porque vi as fotos.
Fátima – Imaculada, quando ele deu a notícia, disse isso pra ti?
Imaculada – O capitão Reginaldo, tem lá no meu depoimento. Na hora que eu vi ele, eu saí aqui. Tinha feito mingau para o meu bebê. Essa sala minha era um hospital, porque meu pai estava acamado aqui. Quatro meses depois meu pai faleceu. Quando saí do quarto e olhei para o relógio, dez horas em ponto, falei “mãe, hora do remédio do pai”. Que eu saio, estava ele aqui já, o portão aberto, a minha cunhada. Ele queria me dar a notícia por telefone e minha cunhada botou a mão e disse “o senhor não vai fazer isso, porque ela tem um pai doente dentro de casa e ela é louca por esse filho. O senhor não vai fazer isso”. Aí ela veio com ele. Quando ele chegou, saí com a mamadeira do meu bebê na mão. Eu disse diga, ele com um papel na mão, não olhava no meu olho. “Senhora, infelizmente…” Quando ele disse “infelizmente”, eu falei meu filho morreu? Porque uma semana antes, eu tinha visto uma história de ladrões entrando na Base e vivia preocupada. Dizia “meu filho tenha cuidado com esses ladrões”. “Não, mãe, a gente trabalha armado”. “Tu trabalha armado?” Fiquei louca. “Mãe, a senhora não sabia? A gente trabalha armado.” Quando eu peguei nisso aqui dele (gola da camisa), joguei ele no portão. Lembro bem que disse assim “o senhor tá dizendo que meu filho morreu?”. “Seu filho morreu. Aconteceu um acidente. O colega brincando matou o outro.” Foi isso que ele me disse. Daí eu não sei mais de nada. Não sei nem com meu filho aqui dentro. O velório foi aqui. Eles queriam lá na Base, mas meu irmão não quis. Passei três meses sem dormir. Passei quatro dias sem comer nada, só na água. Perdi 18 quilos.
Fátima – Lá em casa foi uma tenente. Eu estava viajando, estava só minha filha em casa. Estava em Brasília. Perguntei isso porque lá em casa disseram que tinha ocorrido um acidente na Base. Um acidente com arma e que ele tinha falecido.

OP – Mas disse nesses termos?
Fátima – Nesses termos, não. Até o promotor disse que é muito importante a gente lembrar o que eles disseram em cada ocasião.
Imaculada – Não esqueço nunca o que me disseram. Quando meu irmão chegou, ele perguntou: “Mamãe, o que aconteceu? Mataram o Robson?”. Ela disse “foi, meu filho. Um amigo matou”. Depois, sentado nessa mesa, meu irmão disse “é, minha irmã, foi um acidente”. Até isso eu ainda estava crente que fosse um acidente, que o colega tinha matado ele. Mas quando o doutor Simão veio aqui e disse que não era nada disso…

OP – Ele veio aqui quanto tempo depois?
Imaculada – Veio com uma semana, não foi Fátima?
Fátima – Na minha casa ele não foi. Foi na casa da minha mãe contar a história.

OP – A mesma história?
Fátima – A mesma história. Que ele ti”nha sido assassinado, todos dois.
Imaculada – Ainda disse assim: se o médico da Base mentir, eu sei.
Robério Bertoldo – Ele disse até por quê: com o Robson, se fosse como mostrou, teria ficado o cano (do revólver) encostado na testa e queimava, pela distância.

OP – Ficaria a pólvora.
Imaculada – E não tinha nada. Eu vi a foto do Cleoman.
Robério – Quando a bala vai sair, diz que dá um rebuliço e aí encosta nem que não queira.
Fátima – E outra coisa, teria resto de pólvora nas duas mãos, porque ele teria atirado com as duas.
Imaculada – Se o Cleoman tinha marcas, ele mais forte que o meu, lutaram eles dois? Tinha um hematoma nas costas dele (Cleoman).

OP – Sobre esse hematoma nas costas do Cleoman, o laudo só aponta que era uma equimose supraclavicular, mas não dá detalhes. Antes do ocorrido, o Cleoman havia levado alguma queda? Ele andava de moto?
Fátima – Andava de moto com um amigo dele. Mas não tinha levado queda, não. Andava de moto porque alguém chamava para ir a algum canto. Mas não era constante.

OP – Vocês alguma vez foram ao local das mortes?
Fátima – Não tive coragem.
Imaculada – Eu fui. A última coisa que eu queria ver eram as fotos dele, que não tinha visto. Quero participar de tudo. Quero ver tudo, nem que eu sofra.

OP – A senhora esteve lá quando?
Imaculada – Foi agora, já em 2005. O local lá é o retrato da minha casa.

OP – Como assim?
Imaculada – Pequena. O local onde eles estavam é do tamanho da minha sala. Eu entrei. Todas as portas estavam fechadas. Na parede tinha uma ventilação tipo combogó. Eles passaram o dia sem água para beber nem para tomar banho. Diz que o Cleoman passou o dia perturbando o tenente para ir deixar água.

OP – As senhoras acham que dentro da Base já se sabe quem foi que matou os filhos de vocês?
Fátima – Eu tenho certeza que desde o início eles sabem. Sabemde tudo.
Imaculada – Sabem tudo. Agora me diga, por que eles vão querer sujar a imagem deles?


Por três ocasiões, O POVO procurou o comando da Base Aérea para falar sobre o assunto. Segundo o coronel-aviador Rogério Veras, o inquérito está na Auditoria Militar e ele não teria autorização para falar sobre o caso.


FRASES:

“Acho que a Base obstruiu muita coisa, esconde as coisas através das pessoas que estão ali dentro. Muita gente vinha falar com ela (Imaculada). Depois é ‘não posso falar nada, não posso dizer nada.”


“Até hoje, apesar de todas as conversas, ainda tem muita coisa para explicar. As falhas que existem dentro do inquérito militar são horríveis, clamorosas. Ele (perito) não explicou porque no final do beliche tem sangue. Era para ter dito.”


“Um deles sabia de alguma coisa, ouviu ou viu. Não sei se o meu ou o da Fátima. Mas um deles dois sabia.”
Imaculada

“Acredito, sim, que tem um motivo real. ‘Meu Deus, por que se tira a vida de dois jovens desse jeito?”
Fátima


“Como meu filho poderia estar com o telefone, se quem estava falando ao telefone com a namorada era o Cleoman. Como ele matou o colega?”


“Lembro bem que disse assim o senhor tá dizendo que meu filho morreu? “Seu filho morreu. Aconteceu um acidente. O colega brincando matou o outro. Foi isso que ele me disse. Daí eu não sei mais de nada. O velório foi aqui. Eles queriam lá na Base mas meu irmão não quis.”


“Eu fui (ao local das mortes). A última coisa que eu queria ver eram as fotos dele, que não tinha visto. Quero participar de tudo, quero ver tudo. Nem que eu sofra.”