Como hei de dar meu voto a quem negocia com bandidos e deixa uma metrópole inteira, 11 milhões de habitantes, dois dias refém do crime? Alguém poderia imaginar que o impossível aconteceria e homens encarcerados haveriam de acuar milhões de cidadãos livres

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de “Mística e Espiritualidade” (Rocco), entre outros livros.

 

Como hei de dar meu voto a quem negocia com bandidos e deixa uma metrópole inteira, 11 milhões de habitantes, dois dias refém do crime? Alguém poderia imaginar que o impossível aconteceria e homens encarcerados haveriam de acuar milhões de cidadãos livres, refugiados em casa pelo medo? Como posso escolher que me governe quem esconde a identidade dos mortos pela polícia e permite que jovens, por serem pobres e estarem na rua, sejam alvos da sanha assassina de policiais irresponsáveis?

 

Como posso dar meu voto para ocupar o poder a quem abusa dos meus impostos e permite que um avião comprado com recursos públicos transporte advogados mancomunados com o crime até o cárcere onde os prisioneiros decidem o destino de uma cidade? Onde estão os serviços de inteligência da polícia, as ações preventivas, os cuidados para a recuperação dos que infringem a lei? E quem me convence que os mortos sem antecedentes criminais de fato atacaram dependências policiais antes de serem alvejados?

 

Como dar meu voto a quem trata movimentos populares com repressão e criminaliza os que defendem a reforma agrária? E a quem considera justo o caixa dois e negocia funções públicas em troca de alianças políticas espúrias?

 

Não posso votar em quem qualifica de populistas os ventos democráticos populares que sopram na América do Sul, bafejando os países da região de soberania e independência. Nem a quem torce o nariz preconceituoso diante de operários e indígenas eleitos democraticamente presidentes pela vontade do povo.

 

Como dar meu voto a quem se alia aos remanescentes da ditadura militar, que escutaram silentes os gritos ressoados das câmaras de torturas e o choro incontido das famílias de mortos e desaparecidos? Não posso votar em sorrisos falsos, em partidos cujos candidatos são decididos por meia dúzia de caciques reunidos em torno de vinhos caros, em coligações que se armaram para evitar o estatuto do desarmamento. Nem naqueles que promoveram a privatização do patrimônio público e repassaram recursos acumulados por nossos tributos para empresas estrangeiras comprarem o que pertencia à nação.

Não hei de dar meu voto a deputados que faltaram com a ética, o decoro público, financiados por dinheiro escuso ou envolvidos em máfias de sanguessugas. Nem aos que jamais foram vistos entre os pobres, participando de movimentos populares e apoiando a defesa intransigente dos direitos humanos.

 

Também não hei de atirar meu voto na lata de lixo, no esgoto das amarguras cívicas, na latrina das decepções ideológicas, subtraindo-o da soma de votos atraídos por discursos demagógicos e sofisticadas campanhas destinadas a eleger e reeleger corruptos, alpinistas eleitorais, nepotistas e oportunistas. Hei de valorizar essa ferramenta democrática capaz de alçar ao poder público homens e mulheres sensíveis à exigência histórica de promover reformas na estrutura social brasileira, em especial na fundiária e na tributária.

 

Não deixarei que meu voto seja tragado pelo pessimismo, pela desmotivação política, pelo desalento que desafoga a emoção e encurrala a razão, cegando-a frente ao futuro. E não farei de meu voto um mero jogo digital de quem escolhe uma possibilidade de vitória. Pesquisarei cada um dos candidatos, levantarei sua vida pregressa, exigirei compromissos daqueles que de mim se acercarem. Darei passos para cobrir a ponte que separa a democracia representativa da democracia participativa.

 

Bem dizia Montesquieu, “para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder.” E o único poder capaz de frear o poder do Estado é esse que brota da sociedade civil organizada e mobilizada, do voto consciente e conseqüente, da cidadania que valoriza as eleições e a escolhas que elas implicam.

 

Hei de dar meu voto ao fim da desigualdade social, à reforma de nossas estruturas fundiárias, à redução dos juros, à melhoria da educação e da saúde, à política de segurança pública e combate ao desemprego, à integração da América Latina e à globalização da solidariedade.