MP e órgãos de defesa do consumidor têm competência para ajuizar ação civil pública. Confira análise do promotor Manuel Pinheiro Freitas

A defesa eficaz dos direitos dos consumidores lesados pela empresa de aviação espanhola Air Madrid pode ser efetivada a partir da ação do Ministério Público e dos órgãos de defesa do consumidor. Essa é a avaliação do promotor de Justiça, Mestre em Direito e suplente da Diretoria da ACMP Manuel Pinheiro Freitas, em artigo sobre o tema.

Segundo o promotor, é garantida à Justiça brasileira a prerrogativa para processar e julgar ação civil pública que questione o descumprimento de obrigações por parte da companhia espanhola. Ao ingressar com uma ação dessa natureza, o MP e os organismos de defesa do consumidor tornariam mais célere a instrução processual, em sua opinião.

Confira abaixo a íntegra do texto.

CASO AIR MADRID
O desafio da tutela coletiva dos consumidores em âmbito internacional

Manuel Pinheiro Freitas*

No último dia 16 de dezembro, a Dirección General de Aviación Civil (DGAC) do Ministério de Fomento da Espanha suspendeu a licença de operação da companhia aérea Air Madrid, empresa esta que vinha explorando diversas rotas entre a Europa e a América Latina, dentre elas uma que transportava passageiros entre Madrid-Fortaleza-Buenos Aires e outra entre Barcelona-Fortaleza-Santiago do Chile.

Na noite anterior, a Air Madrid já havia comunicado a suspensão de suas atividades em uma nota publicada na internet, na qual atribuía o estado de ruína da companhia a uma série de medidas supostamente arbitrárias e injustas que teriam sido adotadas pela DGAC e recomendava aos passageiros que buscassem a reparação de seus prejuízos junto ao referido órgão de fiscalização do Ministério de Fomento do Governo Espanhol.

A DGAC, na nota de imprensa que esclareceu sobre os motivos da suspensão do Certificado de Operador Aéreo, sustentou que a Air Madrid havia interrompido as suas atividades por conta própria e que todas as providências adotadas em face da companhia haviam sido orientadas para garantir a segurança dos vôos e o respeito aos direitos dos passageiros.

Na citada nota, a DGAC detalhou um plano de emergência para assegurar a volta para casa dos passageiros em trânsito, até o dia 21 de dezembro de 2006, passageiros estes que deveriam ser acomodados em vôos charter ou em vôos de outras companhias que operassem para os mesmos destinos antes atendidos pela Air Madrid. Já com relação às pessoas que compraram passagens com data de embarque posterior a 31 de dezembro de 2006, a DGAC recomendou que estes encaminhassem as suas reclamações diretamente à companhia aérea, posto que ninguém mais que ela deveria arcar com os ônus dos reembolsos dos bilhetes e das indenizações por perdas e danos.

No meio de todo esse imbróglio, umas dezenas de milhares de passageiros europeus e latino-americanos foram prejudicados, seja porque realizaram as viagens de ida e estão aguardando nos aeroportos para serem acomodados em vôos de volta, sem receber qualquer tipo de assistência por parte da companhia (nem alimentação, nem hospedagem, nem informação), seja porque pagaram por viagens de turismo, de negócios, de estudos, etc. que não serão realizadas.
 
Entre os 120.000 consumidores prejudicados, aproximadamente 1.000 deles adquiriram as suas passagens aéreas nas agências de viagem e nas lojas da companhia em Fortaleza. Por enquanto, os passageiros brasileiros – assim como os argentinos, os chilenos, os peruanos e os colombianos – têm remotas esperanças de obter a devolução das quantias pagas pelas passagens áreas e/ou a indenização pelos danos materiais e morais acarretados pela suspensão dos vôos da Air Madrid.

Porém, as leis brasileiras e espanholas e o Convênio de Cooperação Judiciária em Matéria Civil que foi firmado entre os dois países permitem que o Ministério Público ou uma associação de defesa dos consumidores ingresse com uma ação civil pública, para tutelar os interesses individuais homogêneos dos consumidores lesados pela Air Madrid e que, no caso de condenação da companhia aérea, a sentença da Justiça brasileira seja cumprida pela Justiça espanhola.

Nos termos do referido Tratado Internacional (Art. 17, I, “a” e “b”), é da Justiça brasileira a competência para processar e julgar a ação fundada no descumprimento das obrigações contratuais por parte da companhia aérea, posto que não prevalece o foro de eleição eventualmente estabelecido em contrato de adesão (como é o caso dos contratos de transporte firmados entre os passageiros e a Air Madrid) e que a pessoa jurídica pode ser demandada no local em que mantenha estabelecimento, sucursal ou agência (como as lojas que a empresa mantém na Av. Dom Luis e no Aeroporto Pinto Martins, em Fortaleza).

Convém ressaltar que o citado Convênio de Cooperação admite que uma medida liminar em ação civil pública concedida por um juiz brasileiro (p. ex., para arrestar bens da Air Madrid em território espanhol, visando garantir o ressarcimento dos prejuízos dos consumidores) seja executada na Espanha, com caráter de urgência, diretamente pelos Juízos de Primeira Instância, sem passar pelo Tribunal Constitucional ou por qualquer outro órgão de hierarquia superior da Justiça espanhola, para receber Exequátur (Arts. 6.3, 8.2, 11.3, 18.b e 22.b)    

Outro aspecto que merece registro é que o Código de Defesa do Consumidor brasileiro estabelece a responsabilidade objetiva do fornecedor (Art. 12, CDC), de modo que a Air Madrid não teria como alegar o “fato do Príncipe” (ou seja, que a suspensão das atividades teria ocorrido por força das ações do DGAC do Ministério de Fomento espanhol) para eximir-se do dever de indenizar os consumidores pelos danos materiais e morais decorrentes do descumprimento do contrato de transporte. Para que a Air Madrid fosse condenada a indenizar os passageiros lesados não seria necessário provar a culpa da empresa pela suspensão de suas atividades. Bastaria demonstrar o nexo de causalidade entre a ação e o resultado, ou seja, que houve a suspensão dos vôos e que ela gerou prejuízos para os consumidores.

Alguns anos atrás, seria considerado impossível de resolver um caso como o dos passageiros da Air Madrid, que exige a tutela coletiva de interesses jurídicos de cidadãos de um País para além de suas fronteiras. Entretanto, hoje em dia, nós temos a Lei 7.347/85 e a Lei 8.078/90, que permitem que as pretensões de todos os passageiros lesados sejam veiculadas através de uma única ação, que pode ser movida pelo Ministério Público ou por associações civis (a ação civil pública) e que estabelecem a responsabilidade objetiva da empresa fornecedora (Air Madrid), o que abrevia a instrução processual e aumenta a probabilidade de julgamento favorável aos interesses dos consumidores; e nós temos um excelente Convênio de Cooperação Judiciária em Matéria Civil firmado entre Brasil e Espanha, que agiliza a realização de atos judiciais e simplifica o procedimento de reconhecimento e execução das decisões de juizes brasileiros em território espanhol, porque a Justiça ibérica dispensa o Exequátur.  

Se antes a tutela coletiva dos consumidores em âmbito internacional era praticamente impossível, agora ela é apenas difícil de realizar. Se antes não tínhamos umas leis materiais e processuais e um Tratado Internacional tão avançados, agora já os temos. Se antes os consumidores estavam abandonados à própria sorte, ou melhor, à própria falta de sorte, agora eles já podem contar com a competência do Ministério Público e das associações de consumidores, como o IDEC. Se antes tivemos que nos render à globalização das ações das empresas, agora temos que lutar pela globalização da defesa dos consumidores.

Por tudo isso, o caso dos passageiros lesados pela Air Madrid é uma excelente oportunidade para que os juristas brasileiros façam história…

(*) O autor é Promotor de Justiça no Estado do Ceará e
Mestre em Direito pela Universidade de Santiago de Compostela (Espanha)
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