O pai que tenta vender a própria filha e outras cenas de uma Fortaleza que grita por direitos básicos
O relato de uma visita de um grupo de fotógrafos ao Pirambu, tendo como mote o trabalho (ou a falta dele), traz à tona a reflexão sobre a dignidade humana. Confira o material, publicado pelo jornal O Estado.
O trabalho formal está deixando de existir no planeta. Nesse novo momento, a busca pela sobrevivência faz o ser humano se submeter a qualquer situação simplesmente para poder se alimentar. Compreender esse contexto da precariedade do trabalho, suas causas e principais conseqüências, como a violência por exemplo, e como o fotógrafo pode interferir para ajudar a mudar a realidade foram os temas da Oficina de Fotografia Militante: Escravos urbanos – Fotografia de um mundo violento e sem trabalho, promovido pela EUBRA (Conselho Euro-Brasileiro de Desenvolvimento Sustentado), com o apoio do arquivo Europeu HumanPhoto/Still Pictures em parceria com a Agência Reuters.
Esta oficina foi resultado de uma pesquisa e documentação das condições do trabalho urbano informal promovidos pela EUBRA. Os jornalistas e fotógrafos percorreram a favela do Pirambu e bairros nobres da cidade de Fortaleza, na véspera do feriado do Dia do Trabalho, para documentar em imagens as conseqüências e situações desse mundo sem trabalho.
Véspera de feriado do Dia do Trabalho, chegamos à sede da Associação Comunitária de Ajuda Mútua do Pirambu (ACAMP) para encontrar Francisco Ismar, presidente da Associação. Juntos, um grupo de cinco fotógrafos e jornalista, percorremos becos, ruelas, praia e encontramos trabalhadores informais em situação de exploração, pessoas no desespero precisando de trabalho, pessoas que cansadas de esperar compreendem as regras do jogo da vida e compartilham dessas mesmas regras.
Situada na orla de Fortaleza, a favela do Pirambu detém a segunda maior concentração demográfica, perdendo apenas para a Rocinha, favela carioca. Segundo dados da SSPDS (Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social), a Barra do Ceará e o Pirambu têm uma concentração demográfica de 134 habitantes por hectare, com uma população aproximada de 350 mil habitantes.
Problemas como falta de moradia digna, saneamento, desemprego e drogas se repetem ao longo dos anos, como em outras favelas do país. Projetos para a região não faltam, mas muitos não saem do papel. Ao longo do dia, encontramos famílias nas mais diversas situações de miséria e degradação humana, sem perspectiva e sem esperança de mudança. Algumas desses encontros serão relatados a seguir.
Vende-se filha
Segunda-feira, dia 29 de abril, não houve aula nas escolas do bairro. Dezenas de crianças nos acompanhavam, entre elas Sofia, 9 anos. Com o olhar curioso, nos acompanhou durante todo o percurso pela comunidade. Seu pai, Francisco, de longe observava. Em pouco tempo se aproximou do grupo e perguntou se tínhamos um real. Percebi que estava bêbado e disse que não tinha. Insistiu. Neguei. Pediu porque as meninas passavam fome e precisava do dinheiro para comprar leite em pó.
Então, combinei de comprar uma lata de leite, mas quando terminasse a visita à comunidade. Assim que Francisco saiu de perto, sua filha comentou: “Dá um real não, ele vai gastar com pinga.” Como Francisco, havia vários homens, mulheres e jovens bebendo. Porém, o que nos chamou a atenção foi a afirmação limpa e crua de Sofia.
Continuamos a andar pelos becos e pela praia do Pirambu, e seu José sempre nos acompanhando, mesmo que de longe. Encontramos inúmeros homens e mulheres procurando o que fazer para garantir a refeição do dia. Como o jovem Marciano, 23 anos, desempregado, mora num barraco de 4 metros quadrados com mulher e filho. Pesca todos os dias porque é a única forma que ele encontra para sobreviver. “É siri de manhã, tarde e noite. Peixe quase não tem”, comenta.
Na praia do Pirambu são despejadas em média 5 toneladas de fezes humanas por dia, além do lixo das casas e esgotos clandestinos de outros bairros. Os mariscos que esse homem pesca é o mesmo que se alimenta da praia suja. É uma cadeia de doenças sem fim.
Um grupo se divertia sentando na jangada e bebendo cachaça, dentre eles um casal. Rindo, o homem fala: “Aqui não tem Maria da Penha que nada, aqui é Maria da Peia!”. O riso daquele grupo foi geral. Atitudes como esta, nos fazem perceber que estamos numa região sem princípios, nem valores. Estas pessoas não tiveram acesso a educação de qualidade, saúde e outros serviços públicos necessários à vida e a uma formação mais cidadã. O único poder público que aparece diariamente é a Polícia.
São pessoas que vivem “entulhadas” em barracos de papelão e sucata, num calor insuportável. Pais com cinco ou seis filhos não conseguem creches nem escola para todas, por isso as mães ficam sem trabalhar para cuidar deles.
Algumas destas, inclusive ajudam os pais no trabalho. É o caso de João, 9 anos, ajuda a mãe a catar lixo para sustentar uma família de 5 filhos. Sem poder ir à escola, João passa o dia exposto ao sol e às doenças encontradas no lixo. O resultado é uma pele marcada por alergias, frieiras e queimaduras. Enquanto isso, o pai de Sofia não parou de pedir um real.
Até que veio a pergunta inesperada:
José: Ei, ela (Sofia) gostou de ti, não quer levar ela?
B: O senhor quer que eu cuide dela?
José: É, leva ela, mas aí a gente tem que conversar. Você me dá o número do seu celular que a gente conversa.
B: O que o senhor quer? José: Me passa o número do seu celular que a gente conversa. A menina gostou de ti, né não menina?
Sofia, com os olhos arregalados, faz o sinal de afirmativo e sorri com a esperança de sair dali.
José: Coloca ela na escola já está bom. Me dá o seu celular e a gente acerta tudo.
B: Mas você ainda não me disse bem o que você quer.
Calado, desconversou. Caminhamos em direção ao mercado para comprar o leite que eu havia prometido. Sofia segurava a embalagem firme no peito quando seu pai novamente apareceu, agora pedindo o leite. A criança, esperta, não queria entregar a lata de leite com receio do pai vender.
Abaixei, fiquei na altura dos olhos de Sofia e falei : “Posso colocar o leite num saco e você esconder. Você quer?”
Sem expressão, calada e segurando firme a caixa de leite, Sofia ficou mais alguns minutos conosco. Em seguida, foi com o pai para o barraco que fica na praia ao lado do lixão.
Seu José, 32 anos, pedreiro, mais um desempregado, tem cinco filhos e Sofia é a única mulher. Como muitos outros, não sabe como será o dia de amanhã. O vício é a fuga para o paraíso instantâneo. Quando a realidade chega, o desespero o acompanha.
Não sei o que aconteceu, se o pai vendeu ou não o leite, mas o seu José é mais uma vítima da falta de esperança e de políticas públicas. Outras dezenas de meninas e meninos nos acompanharam e ouviram atentas as nossas conversas com os moradores. No final da nossa jornada, impotente eu ouvia:
– Tia, me leva também.