Chega à Procuradoria Geral da República investigação sobre desvios nas cotas de transporte aéreo e postal dos deputados federais. Saiba mais

A venda de passagens aéreas da cota dos deputados, que acabam virando salário indireto ou sendo usadas por parentes, é alvo de um pedido de investigação encaminhado pelo Ministério Público Federal (MPF), em Brasília, à Procuradoria Geral da República. O caso tem como base uma denúncia de peculato e estelionato qualificado contra o ex-deputado Lino Rossi, justamente por irregularidades e uso indevido desses dois benefícios.

O MPF quer abrir a “caixa preta” das passagens aéreas e da cota de selos, já que o assunto é tratado com pouca transparência pela Câmara, mesmo depois de uma sindicância interna que remeteu o caso de Rossi para os procuradores da República, ainda em 2005.

Apesar de ter sido alvo dessa mesma sindicância na Câmara e de responder, desde julho de 2007, pelos mesmos crimes que o ex-parlamentar na Justiça Federal, o servidor Marlon Melo de Araújo, ex-assessor de Rossi, foi contratado, um ano depois, para trabalhar no gabinete do deputado Edmilson Valentim (PCdoB-RJ).

Marlon é apenas um dos seis acusados nesta denúncia do MPF de desviar dinheiro dessas cotas. Mas o caso do funcionário – que foi exonerado do cargo pelo deputado do PCdoB ainda na semana passada após ser informado pelo Congresso em Foco das acusações – revela como a Câmara não exerce um controle sobre as ações que correm na Justiça contra assessores parlamentares.

Ao anunciar a demissão do servidor, Valentim garantiu que não teria contratado o assessor se soubesse da existência da denúncia (veja a íntegra da resposta do deputado).

Falta de controle

Procurada pela reportagem, a Câmara negou a existência da própria auditoria sobre esse caso e admitiu que não há nenhum acompanhamento ou fiscalização sobre o uso das passagens aéreas destinadas aos parlamentares.

Segundo a assessoria de imprensa da Casa, a responsabilidade pelo uso do dinheiro é do deputado, que administra sua cota com as companhias aéreas ou agência de viagem de sua livre escolha.

Questionada se o parlamentar poderia repassar a passagem para parentes e assessores ou embolsar o dinheiro arrecadado com a venda das passagens, a assessoria limitou-se a repetir que a responsabilidade, também nesses casos, é do deputado.

No pedido de abertura do inquérito civil público, apresentado no último dia 9 de junho, a procuradora da República Anna Carolina Resende relata que foram encontrados “fortes elementos de irregularidades cometidas na emissão de passagens aéreas pagas com recursos da Câmara dos Deputados” e no uso de “verbas destinadas aos senhores deputados para expedição de correspondências”. A procuradora se refere ao que foi apurado no inquérito policial sobre o caso Lino Rossi.

Passagens para parentes

Em entrevista ao site, Marlon confirmou que retirou passagens em Brasília em nome da mulher e dos filhos de Lino Rossi, mas negou que tenha falsificado a assinatura do ex-parlamentar e de sua suplente durante seu período de licença, para ter passagens em seu favor.
   
O ex-assessor também se defendeu da denúncia de que teria ficado com cerca de R$ 6 mil da cota de selos do deputado. Segundo ele, foram enviadas para o escritório de Rossi em Cuiabá duas caixas com pacotes de selos. Uma delas foi extraviada. Como ele era responsável pelo envio do material, acabou sendo arrolado na acusação.

“Trabalhar com aquele deputado só me deu problema. Foi uma bobeira minha que podia ter ficado só no âmbito da Câmara”, reclama Marlon.

Em seu depoimento sobre o processo em Cuiabá, Lino Rossi defendeu a tese de que não teve qualquer participação no esquema e que só descobriu falsas assinaturas nas requisições de passagens apresentadas a uma companhia aérea quando reassumiu o mandato, depois de 121 dias da licença.

O site tentou contato com seus advogados na capital do Mato Grosso, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição. A reportagem não conseguiu localizar a suplente de Rossi, a ex-deputada Thais Barbosa.

Lino Rossi também é acusado pelo Ministério Público de ser um dos coordenadores do esquema de superfaturamento de ambulâncias, no famoso caso dos sanguessugas. Segundo a denúncia, ele recebeu 117 pagamentos da Planam, pivô do escândalo, num total de R$ 3,037 milhões, em troca de ajuda na liberação de emendas que favoreciam a empresa.

Cidade maravilhosa

O MPF também deve apurar como são administrados os créditos que sobram todos os meses das cotas aérea e postal dos parlamentares. Os deputados têm crédito mensal que varia de cerca de R$ 4 mil a pouco mais de 18 mil, conforme a unidade federativa que representam, para gastar com passagens aéreas.

O Congresso em Foco fez uma simulação sobre gastos que teriam os parlamentares que têm direito às maiores fatias desse bolo: Acre, com R$ 17.429,77, e Roraima, com R$ 18.337,68. Considerando-se apenas tarifas não promocionais disponíveis no mercado, constatou-se uma sobra que varia de R$ 4 mil a R$ 5 mil na compra de quatro passagens de ida e volta entre Brasília e as respectivas capitais desses estados.

Esse valor pode ser ainda maior considerando que os deputados podem usar créditos para o envio de correspondências e uso do telefone funcional na compra de passagens aéreas. A possibilidade está prevista no Ato da Mesa 11/2007.
 
Os procuradores da República também devem questionar a incorporação na cota de cada um dos deputados de uma passagem mensal, de ida e volta, para o Rio de Janeiro. “A justificativa é muito difícil de engolir. A de que o Rio de Janeiro é capital da República, mas isso já acabou há muito tempo”, avalia o deputado licenciado Augusto Carvalho (PPS-DF).

O parlamentar é autor de um projeto de lei que obriga todos os funcionários públicos a devolverem as milhas que acumularem em deslocamentos a serviço pagos pelo governo federal. O Projeto de Lei 544/02007 está parado na Comissão de Trabalho da Câmara desde março de 2007.

Considerando que o governo tem um gasto anual de cerca de R$ 500 milhões com passagens aéreas, a economia calculada pelo parlamentar, considerando que as companhias dão 10% de bônus, seria de R$ 50 milhões. “Em qualquer país do mundo R$ 50 milhões é muito dinheiro, no Brasil parece que não”, diz Carvalho.

Mudança de rota

Passagens aéreas que deveriam servir aos ex-deputados Maurício Rabelo (TO) e Milton Barbosa (BA) e ao deputado Luiz Bittencourt (PMDB-GO) foram parar numa agência de turismo de Maringá (PR), na outra ponta do país.

Ainda em dezembro de 2006, o promotor estadual de Defesa do Patrimônio Público, José Aparecido Cruz, de Maringá, abriu inquérito civil público para apurar a comercialização de passagens aéreas das cotas pessoais desses deputados pela Katar Turismo. Passagens emitidas em nome dos parlamentares foram vendidas para a câmara de vereadores e a prefeitura de Maringá.

Depois de constatar que os funcionários paranaenses não tinham participação no esquema, o promotor encerrou o caso, mas remeteu cópia do processo para o Ministério Público Federal no Paraná. O caso atualmente encontra-se no Supremo Tribunal Federal (STF), já que Luiz Bittencourt ainda é deputado e, como tal, dispõe de foro privilegiado.

No Supremo

O caso é tratado na Petição 4273, sob análise do ministro Cezar Peluso desde o dia 10 de março deste ano. Além do deputado, o dono da Katar, Waldir Furlan Júnior, também é citado pelo MPF. O Congresso em Foco tentou contato com os advogados de Furlan Júnior, mas não obteve resposta. O mesmo aconteceu com o pedido de entrevista encaminhado por e-mail ao deputado Luiz Bittencourt.

“Se o governo destina dinheiro para aplicar na educação, quem gastou precisa comprovar o gasto. O mesmo deveria ser feito com a passagem dos parlamentares”, opina o promotor José Aparecido Cruz.

Além da cota mensal sem ter que prestar contas, os deputados e os senadores também têm outro tipo de regalia quando pretendem voar. Como revelou o Congresso em Foco em março de 2007 (leia mais), um serviço especial disponível nos aeroportos do Rio e de Brasília poupou os parlamentares, por exemplo, dos transtornos causados pela crise aérea do ano passado.

O Congresso Nacional gasta mais de R$ 1 milhão por ano com o serviço que evita que deputados e senadores enfrentem filas no check-in e permite que eles cheguem pouco antes do embarque para pegar o cartão e despachar suas bagagens – um privilégio, obviamente, negado ao cidadão que não exerce o mandato parlamentar.