Artigo: Fundos da infância e a moralidade pública
O CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente em breve decidirá se aprova resolução permitindo ou negando, expressamente, viabilidade às conhecidas “doações casadas ou vinculadas” ou o “direcionamento de recursos destinados aos fundos das crianças e dos adolescentes”.
O tema já foi objeto de análise em artigo de Francisco de Assis Azevedo (“Em briga de touros, quem morre é o sapo”, 13/8), tendo o autor concluído que “as doações casadas” são eficazes, sugerindo o acolhimento no texto da futura resolução.
Alegam os partidários das “doações casadas” que o ato de “doação” de recursos aos fundos da criança é um ato de “liberalidade da pessoa física e/ou jurídica”, que, por isso, pode e deve decidir para qual entidade ou projeto deverá o conselho de direitos destinar referidos recursos -daí o porquê da denominação: “doação casada”.
Alguns conselhos de direitos (com destaque para São Paulo) e grupo formado por institutos, fundações e empresas (Gife) acreditam que a medida foi capaz, por exemplo, de ampliar os recursos destinados ao Fundo da Criança de São Paulo, passando de R$ 3 milhões em 2004 para R$ 40 milhões em 2007.
Membros do Ministério Público dos Estados e da União, além do respeitável movimento de fóruns de direitos da criança e do adolescente (especialmente de São Paulo e Rio de Janeiro), buscam o respeito a princípios constitucionais: legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência, ou seja, o respeito ao interesse público – que, diga-se, deve(ria) sempre nortear todo e qualquer ato da administração pública.
Surge a primeira questão: se pode a pessoa física ou jurídica decidir para qual entidade ou projeto deve ser destinado o dinheiro, para que foram criados e para que servem, afinal, os conselhos de direitos?
Por certo alguns dirão, lembrando Vargas: “A lei, ora, a lei…”.
Curioso observar que esse tipo de conduta remonta ao período das capitanias hereditárias, época em que o rei de Portugal escolhia ao seu talante quais os “donatários” das terras brasileiras, “quintal de sua casa”.
Quinhentos anos de história depois e, mesmo com a conquista de uma Constituição realmente democrática -que logo completará 20 anos de vida-, grupos sedizentes “militantes da infância” ainda espelham suas práticas atuais na condução da administração pública em atos de império.
Deixando a história de lado, simples reflexão jurídica sobre o tema permite concluir que o conceito de doação não é adequado, já que o interessado/destinador de recursos aos fundos da infância terá direito a abatimento em seu imposto de renda (de 1% a 6%). Ou seja, não se trata de um “favor às criancinhas”, como muitos falsa e publicamente alardeiam.
Além disso, uma vez depositado o dinheiro na conta dos fundos, que, por sua vez, integram os respectivos cofres públicos de municípios, Estados e União, o dinheiro passa a ser público, e não mais particular, cabendo a obediência a todo o regramento normativo de direito público brasileiro.
Ou seja, o que desejam os defensores das “doações casadas” é que o Conanda autorize expressamente na futura norma o famoso “jeitinho”, o “toma-lá-dá-cá”, o “coronelismo” na gestão do dinheiro público, tudo em ofensa à Constituição Federal e demais normas vigentes no país, abrindo aí espaço para atos de improbidade administrativa e, por que não dizer, favorecimentos (político-partidários, eleitoreiros) e até mesmo corrupção.
Como é o empresariado brasileiro aquele que tem o dinheiro e o poder, permitindo-se agir no melhor estilo “se não fizer do meu jeito, não dou um centavo” e porque os governos municipais, estaduais e federal não costumam destinar recursos aos fundos da infância, é fácil concluir como os conselhos de direitos têm agido por todo o país.
Não explicam, contudo, por qual razão, a despeito do significativo aumento de caixa de 2007 do Fundo da Criança de São Paulo, crianças e adolescentes permanecem diuturnamente na praça da Sé (apenas para citar a mais conhecida), em evidente situação de risco.
Parece, nesse caso, que o chavão “dinheiro não é tudo” se encaixa quase como uma luva.
Felizmente, práticas imorais não têm escapado ao atento olhar do STF, como ocorreu com o nepotismo.
Ao discorrer sobre o caso, disse o respeitado ministro Carlos Ayres Britto que a decisão do Supremo “é a confirmação de que não vale mais confundir tomar posse “no cargo” com tomar posse “do cargo”, como se fosse um feudo, uma propriedade privada, um patrimônio particular”.
Qualquer semelhança com o conteúdo desse artigo é mera coincidência… ou não. Enfim, o que se espera do Conanda é que respeite as normas constitucionais vigentes, vedando práticas imorais na gestão dos recursos dos fundos da infância, servindo de exemplo positivo para todos os demais conselhos do país, sob pena de possivelmente ver seus atos questionados no STF.