Em artigo, a promotora de Justiça Lucila Silveira rejeita a visão do jogo do bicho como diversão inocente ou prática caridosa. Leia mais
Ultimamente, a imprensa cearense tem veiculado boas matérias sobre o “jogo do bicho”, na esteira de recente operação policial que resultou no fechamento da conhecida “empresa” Paratodos, que coordenava a contravenção no Estado.
Muitas das matérias têm caracterizado o jogo do bicho como instituição cultural de profundas raízes no imaginário popular. Por esta abordagem, a suposta contravenção seria, na verdade, um patrimônio histórico e cultural a ser protegido, e não combatido. A hipótese não é de todo absurda, embora haja diversos aspectos a examinar.
O trabalho jornalístico tem destacado, igualmente, o problema social gerado pelo “desemprego” de dezenas de apontadores, arregimentados não por acaso dentre parcelas especialmente mais fragilizadas da população: idosos, portadores de necessidades especiais, etc. A Paratodos quase foi pintada como entidade de beneficência.
Com todo o respeito devido às contribuições abalizadas dos antropólogos e historiadores de nomeada, bem como ao sentimento sincero da massa de inocentes úteis, que sempre os há, creio que há uma faceta que ainda carece de aprofundamento, a fim de que a opinião pública tenha sobre o tema uma percepção mais abrangente.
O jogo do bicho – como dolorosamente bem sabem os cariocas – há muito deixou de ser uma diversão inocente. Hoje, a contravenção está profundamente vocacionada para o favorecimento à lavagem de dinheiro proveniente de atividades criminosas organizadas e extremamente danosas à sociedade.
Talvez o apostador que diariamente faz a sua “fezinha” ou mesmo o apontador que a anota não tenham conhecimento ou sequer suspeitem de que podem servir de fachada simpática para o tráfico de drogas, a exploração da prostituição (inclusive infantil), o contrabando (que rouba valiosos empregos formais), o comércio ilegal de armas…
Ademais, pouco destaque tem recebido o principal mote da ação da Polícia Federal: a sonegação fiscal aberta e freqüentemente praticada pelos “banqueiros” do bicho.
A “caridade” supostamente praticada pelos “barões do bicho” nada tem de inocente ou de desinteressada; é cortesia feita com chapéu alheio – no caso, o amplo chapéu dos contribuintes de impostos, que somos todos nós.
Todos sabem que é com a receita de impostos que o Estado faz caixa para prestar os serviços públicos: saúde, educação, segurança. O sonegador fiscal é criminoso tão funesto quanto o corrupto; ambos, sangrando os cofres públicos, impedem a maioria da população de alcançar a satisfação de suas necessidades mais básicas.
É lamentável, não restam dúvidas, que tantas pessoas carentes fiquem sem a ocupação que lhes rendia alguns trocados. Talvez seja o caso de se colocar em prática alguma política assistencial de emergência para elas, desde que provem efetivamente a situação de carência. Porém, esse véu pretensamente social que se quer lançar sobre a loteria zoológica não pode servir de justificativa para tolerar ilegalidades que ajudam a eternizar injustiças sociais.
Sob o prisma cultural, é até possível e desejável encontrar uma forma de preservação do jogo do bicho. A criatividade inerente à democracia poderá encontrar respostas lícitas para o problema.
No estado atual, todavia, devem ser afastadas tanto as visões romântico-sentimentalistas, quanto as meramente moralistas. O jogo do bicho, presentemente, abriga uma rede de crimes maiores e bem mais graves do que a mera contravenção que lhes serve de biombo.
Nunca é demais relembrar o samba de Chico Buarque: “Agora já não é normal/ O que dá de malandro regular, profissional/ Malandro com aparato de malandro oficial/ Malandro candidato a malandro federal/ Malandro com retrato na coluna social / Malandro com contrato, com gravata e capital/Que nunca se dá mal”.