Atendendo à solicitação da ACMP, a Assembleia Legislativa realizou sessão comemorativa dos 400 anos do Ministério Público

Atendendo à solicitação da Associação Cearense do Ministério Público, a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará realizou, na última segunda-feira (14 de dezembro), sessão solene em comemoração aos 400 anos do Ministério Público.

O Presidente da ACMP, Manuel Pinheiro, ressaltou os sacrifícios e as conquistas do passado e fez algumas reflexões sobre os acontecimentos do presente e os desafios do futuro da Instituição. Leia o discurso na íntegra:

Discurso proferido pelo Presidente da ACMP na sessão solene realizada pela Assembléia Legislativa do Estado do Ceará para a comemoração dos quatrocentos anos do Ministério Público no Brasil (14/12/2009)

Saudações:

Nós queremos aproveitar esta oportunidade, em que estamos reunidos para comemorar os 400 anos do Ministério Público no Brasil, para registrar os sacrifícios e as conquistas do passado, mas principalmente para compartilhar algumas reflexões sobre os acontecimentos do presente e sobre os desafios do futuro da nossa Instituição.

Numa solenidade como esta, seria uma grave injustiça deixar de mencionar os nomes de algumas pessoas que ajudaram a escrever os quatro séculos de história do Ministério Público no Brasil. Porém, como sabemos que a ocasião não comporta discursos longos, atrevemo-nos a escolher apenas cinco personagens que viveram momentos importantes na vida da nossa Instituição. 

O primeiro personagem que não pode ser esquecido é MANOEL PINTO DA ROCHA, que foi o primeiro Promotor de Justiça a atuar em terras brasileiras, logo após a fundação do Tribunal da Relação do Estado do Brasil em 1609.

No Brasil, a atuação de MANOEL PINTO DA ROCHA marcou o início da transição do arcaico sistema inquisitorial, em que o mesmo agente estatal apresentava a acusação e realizava o julgamento, para o atual sistema acusatório, em que a função de acusar está reservada para o Promotor de Justiça e a função de julgar está reservada para o Juiz de Direito.

O Promotor de Justiça MANOEL PINTO DA ROCHA tornou-se, assim, o primeiro garante da imparcialidade no julgamento dos recursos criminais em nossas terras.

O segundo personagem que não pode ser esquecido é o grande filósofo e jurista cearense RAIMUNDO DE FARIAS BRITO, que devotou grande parte de sua vida ao Ministério Público.

FARIAS BRITO foi nomeado Promotor de Justiça em Viçosa do Ceará no ano de 1885. Três anos depois, ele pediu remoção para a Comarca de Aquiraz. Mais tarde, transferiu-se para o Estado do Pará, onde continuou atuando como Promotor de Justiça até 1909.

É certo que outros grandes juristas cearenses também foram promotores de Justiça no início de suas carreiras, como CLÓVIS BEVILÁQUA e JOAQUIM PIMENTA.

Mas o que distingue FARIAS BRITO dos demais não é apenas o fato de que ele dedicou mais de duas décadas de sua vida ao Ministério Público do Ceará e ao Ministério Público do Pará, mas sim os valores que o seu ingresso na carreira e que o seu trabalho como Promotor de Justiça simbolizam para a nossa Instituição.

No Brasil Império, o acesso ao cargo de Promotor de Justiça era restrito aos mais abastados. De fato, somente podiam ser promotores aqueles que estivessem aptos para serem jurados, somente podiam ser jurados aqueles que estivessem habilitados como eleitores e somente podiam ser eleitores aqueles que possuíssem renda anual igual ou superior a duzentos mil réis. Era a época do chamado Voto Censitário.

Nesse período, os bacharéis formados pelas famílias ricas do Império geralmente iniciavam as suas vidas públicas como Promotores de Justiça. Muitos deles, aliás, depois seriam Presidentes da futura República dos Bacharéis, como RODRIGUES ALVES, EPITÁCIO PESSOA, VENCESLAU BRÁS, DELFIM MOREIRA e WASHINGTON LUIS.

Mas FARIAS BRITO não pertencia à elite privilegiada. Ele era um descendente de escravos, nascido numa família de agricultores humildes do Município de São Benedito. Ele superou todas as dificuldades inerentes à sua origem étnica e à sua condição social, até conseguir formar-se Bacharel pela Faculdade de Direito do Recife, para depois voltar ao Ceará e iniciar a sua carreira como Promotor de Justiça.

O fato de uma pessoa negra e de ascendência pobre, como era FARIAS BRITO, ter conseguido ser Promotor de Justiça, ainda durante o Segundo Império, tem para nós uma enorme carga simbólica. Este fato simboliza que, desde aquela época, o Ministério Público já estava preparado para acolher todos aqueles que estivessem dispostos a ingressar em suas fileiras, independentemente da sua origem étnica ou da sua condição social.   

Além disso, temos orgulho em dizer que nos primeiros anos de sua atuação como Promotor de Justiça, FARIAS BRITO ajudou a cumprir uma das missões mais belas que já foram confiadas ao Ministério Público brasileiro, ao longo destes quatrocentos anos de história.

De fato, a Lei do Ventre Livre de 1871 confiou aos promotores de Justiça a tarefa de cuidar para que os filhos livres das mulheres escravas fossem devidamente registrados, para que eles deixassem de ser objetos de Direito para serem sujeitos dos seus próprios direitos.

A atuação de FARIAS BRITO e dos outros promotores de Justiça do final do Século XIX, que transformaram em verdadeiros cidadãos os filhos das mulheres escravas, simboliza, para nós, a descoberta da vocação institucional do Ministério Público para lutar pelos direitos dos menos favorecidos. É por isso que afirmamos que o Ministério Público de hoje tem o corpo e o espírito de FARIAS BRITO.

O terceiro personagem que não pode ser esquecido é o cearense JOSÉ JÚLIO DE ALBUQUERQUE BARROS, o Barão de Sobral, que foi o primeiro Procurador-Geral da República, nomeado quatro dias depois da promulgação da Constituição de 1891.

JOSÉ JÚLIO DE ALBUQUERQUE BARROS foi Promotor de Justiça em Sobral, depois foi membro desta Casa como Deputado Provincial, de 1867 a 1870, foi Presidente das Províncias do Ceará e do Rio Grande do Sul, foi Ministro do Supremo Tribunal Federal e finalmente, no ano de 1891, tornou-se o primeiro Procurador Geral da República.

Quando JOSÉ JÚLIO DE ALBUQUERQUE BARROS iniciou a sua carreira como Promotor de Justiça em Sobral ainda não se falava em Ministério Público como uma Instituição. Somente em 1874, o Decreto Imperial n. 5.618 fez a primeira referência à expressão Ministério Público para designar a Instituição formada pelos promotores de Justiça.

A rigor, o Ministério Público somente foi organizado como uma Instituição no ano de 1890, já depois da proclamação da República. E, no ano seguinte, o Barão de Sobral foi escolhido para ser o primeiro Chefe da Instituição do Ministério Público Federal, para orgulho de todos nós cearenses.

O quarto personagem que não pode ser esquecido é AMÉLIA DUARTE, que foi a primeira mulher a ingressar no Ministério Público Federal, através do concurso público que foi realizado no ano de 1936.

A obrigatoriedade do ingresso na carreira ministerial através de concurso público havia sido instituída pela Constituição de 1934, a mesma Constituição que finalmente havia assegurado o direito ao voto das mulheres brasileiras.

Neste contexto tão especial, de afirmação da cidadania plena da mulher, a aprovação de AMÉLIA DUARTE simbolizou que as brasileiras estavam aptas não apenas para escolher os seus representantes, mas também para exercer os cargos públicos mais elevados da República.    

O quinto personagem que não pode ser esquecido é RAUL BARBOSA, que foi o primeiro Presidente da Associação Cearense do Ministério Público e que, posteriormente, como Deputado Federal Constituinte, ajudou a elaborar a Carta Política de 1946, que resgatou a dignidade constitucional do Ministério Público.

Por certo, depois de ter a sua autonomia consagrada pela Constituição democrática de 1934, o Ministério Público foi vilipendiado pela Constituição autoritária de 1937 e pelas leis ordinárias do regime de exceção.

As garantias dos membros do Ministério Público Federal foram rebaixadas ao patamar infraconstitucional. Nos Estados, os interventores designados pelo Poder Central nomeavam e exoneravam os promotores de Justiça, de acordo com suas conveniências políticas e pessoais. Isso para falar em apenas alguns dos muitos retrocessos institucionais que ocorreram nesta época tenebrosa do Estado Novo.

Foi nestas circunstâncias difíceis, que RAUL BARBOSA e outros quatro visionários fundaram, no dia 25 de dezembro de 1942, a Associação Cearense do Ministério Público, esta entidade séria e combativa que tem ajudado a escrever a nossa história.

Três anos depois, o primeiro Presidente da ACMP foi eleito Deputado Federal Constituinte e ajudou a elaborar a Carta Política de 1946, que restaurou o status constitucional do Ministério Público, distinguido-o com um título próprio, sem vinculação com os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e que também fortaleceu as garantias funcionais dos promotores e procuradores, que haviam sido suprimidas do texto da Constituição autoritária de 1937.

Estes cinco personagens que mencionei viveram momentos importantes dos primeiros 350 anos da nossa Instituição. Os 50 anos mais recentes foram escritos pelas gerações de promotores e procuradores que estão presentes nesta solenidade.

Dentre as pessoas que estão no Auditório, não seria difícil apontar figuras tão ou até mais importantes para o Ministério Público do Ceará e para o Ministério Público do Brasil. Mas, por prudência e por justiça, é preciso deixar que os personagens importantes da história que nós estamos vivendo sejam reconhecidos pelas futuras gerações.

Eu estou certo de que, daqui a algumas décadas, quando a história do Ministério Público do Século XX for contada, muitos de vocês serão lembrados, com a mesma gratidão com que agora há pouco nós lembramos de MANOEL PINTO DA ROCHA, de FARIAS BRITO, de ALBUQUERQUE BARROS, de AMÉLIA DUARTE e de RAUL BARBOSA.

Para tratar destes últimos cinqüenta anos, que, de certo modo, já é tratar do presente, nós preferimos falar do Ministério Público enquanto Instituição. Uma Instituição que é como uma árvore que só cresce na estação da democracia e que, por isso mesmo, foi podada pelo regime autoritário instaurado pelo golpe militar de 1964.

A Constituição outorgada de 1967 reduziu a autonomia do Ministério Público, incluindo as normas sobre a sua organização e o seu funcionamento no capítulo reservado ao Poder Judiciário. A Emenda Constitucional n. 1, de 1969, foi ainda mais além e, no afã de concentrar poderes nas mãos do Presidente da República, deslocou as normas sobre o Ministério Público para o capítulo do Poder Executivo.

Sem embargo, quando a nova estação democrática já dava os seus primeiros sinais, a árvore do Ministério Público voltou a crescer. A Lei Complementar 40 de 1981 afirmou a autonomia administrativa e financeira do Ministério Público e apontou como uma de suas funções institucionais a promoção da ação civil pública, na forma da lei.

Quatro anos depois, a Lei da Ação Civil Pública ampliou consideravelmente o âmbito de atuação do Ministério Público, ao atribuir-lhe a tutela do meio-ambiente, dos direitos dos consumidores, do patrimônio histórico e cultural, entre outros interesses difusos e coletivos.

Mantendo a tradição das constituições democráticas anteriores, a Carta Magna de 1988 reservou uma posição de destaque para o Ministério Público, ao lado e com independência em relação aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

A nova Constituição dispôs que as escolhas dos Procuradores Gerais deveriam recair obrigatoriamente sobre membros da carreira e conferiu aos membros do Ministério Público as garantias da vitaliciedade, da inamovibilidade e da irredutibilidade de subsídio.

Ademais, a Constituição impediu que as funções do Ministério Público pudessem ser desempenhadas por pessoas estranhas aos seus quadros, acabando de vez com a figura do Promotor “ad hoc”.

Apreciando estes 400 anos de história, reconhecemos que o admirável crescimento do Ministério Público deve-se ao sacrifício dos homens e das mulheres que fizeram e que ainda fazem parte da Instituição, mas principalmente ao reconhecimento da parcela mais humilde da população, para a qual têm sido dedicados os seus maiores esforços.

A maioria da população reconhece que o Ministério Público “veste a sua camisa”, que ele luta contra quem quer que seja para garantir os seus direitos fundamentais. E as pesquisas de opinião demonstram que, atualmente, o Ministério Público é uma das instituições mais acreditadas e respeitadas do País.

Aliás, a credibilidade e o respaldo popular têm servido de escudo nas batalhas travadas nos parlamentos e tribunais contra as ações dos interesses contrariados, que desejam suprimir algumas das funções do Ministério Público e algumas das garantias dos promotores e procuradores.

Olhando para a raiz dos nossos problemas históricos, os constituintes de 1988 resolveram confiar ao Ministério Público algumas tarefas muito difíceis, como promover o equilíbrio nas relações de trabalho e nas relações de consumo, como combater as fraudes e os abusos no processo eleitoral e como lutar contra a corrupção e o desvio de verbas públicas.

Para enfrentar uma enorme demanda de abusos, de fraudes e de desvios, que obstruíam o nosso avanço civilizatório, o Ministério Público teve que agir com muito vigor e com muita energia, como vem fazendo nas duas últimas décadas.

É certo que muitas vezes houve exagero, mas nunca faltou boa-fé. Os excessos ocasionais do Ministério Público têm sido controlados pelo sistema de freios e contrapesos do nosso Estado Democrático de Direito e isso é comum que aconteça em qualquer sociedade razoavelmente amadurecida.

O que não condiz com o interesse da sociedade é que o Ministério Público seja omisso diante de tantas injustiças ou que ele seja incapacitado para enfrentar os desmandos do poder político e do poder econômico. 

O Ministério Público está muito mais maduro, está cada vez mais consciente das suas missões de colaborador para o desenvolvimento sustentável e de promotor da Justiça social, cada vez mais consciente da necessidade de melhorar as suas relações com os Poderes do Estado e com a sociedade.

Enfim, o nosso Ministério Público tem sido cada vez mais a “manus publicum”, a mão que pertence ao povo e que protege os interesses do povo. E, sendo assim, como todo poder emana do povo, estejamos certos de que, continuando ao lado do povo, ele jamais permitirá que o Ministério Público seja acorrentado.

Muito obrigado.
Manuel Pinheiro
Presidente da Associação Cearense do Ministério Público