Para ministros, procuradores e estudiosos, decisão abre brecha para punir agentes do Estado que cometeram crimes nos anos de chumbo
Um julgamento recente do Supremo Tribunal Federal (STF) reabriu um assunto que parecia estar encerrado: o alcance da Lei de Anistia aos crimes cometidos durante a ditadura militar (1964-1985).
Ao julgar a extradição do major argentino Norberto Raul Tozzo, envolvido na tortura e morte de 22 presos políticos de seu país em 1976, no episódio conhecido como Massacre de Margarita Belén, os ministros confirmaram o entendimento de que os sequestros praticados naquela época e cujas vítimas ou corpos não tenham aparecido são crimes continuados e permanentes (estariam sendo cometidos até hoje).
A tese levantou a dúvida sobre a possibilidade de investigar e punir agentes do Estado brasileiro responsáveis pelo desaparecimento de pessoas durante a ditadura militar. Alguns ministros do próprio STF, procuradores e estudiosos do assunto entendem que, a partir dessa decisão, o Brasil poderia processar criminalmente os responsáveis pelo chamado "desaparecimento forçado", independentemente da Lei de Anistia de 1979.
A decisão confirmou o entendimento firmado pelo Supremo em um caso até então isolado. Em agosto de 2009, o STF autorizou a extradição do major do Exército uruguaio Manuel Cordero Piacentini, que fez parte da Operação Condor – nas palavras do governo argentino, "uma organização terrorista, secreta e multinacional para caçar adversários políticos" dos regimes militares do Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Bolívia nas décadas de 1970 e 1980.
Piacentini era acusado pelos governos da Argentina e do Uruguai de ser responsável pelo desaparecimento de ativistas de esquerda em 1976. Até hoje, os corpos das vítimas não foram encontrados.
Naquele julgamen to, capitaneados pelo voto do ministro Cezar Peluso, o tribunal firmou o entendimento de que não poderia presumir que as vítimas estivessem mortas, o que geraria a prescrição dos fatos, por ser um crime permanente. A mesma tese foi reforçada na sessão de 19 de maio, que autorizou a extradição do militar argentino.
"Capenga". Voto vencido nesses julgamentos, o ministro Marco Aurélio negou os dois pedidos de extradição sob o argumento de que no Brasil o crime não poderia ser punido, pois teria sido perdoado pela Lei de Anistia. "Tivesse sido o crime praticado no Brasil haveria a possibilidade de persecução criminal? Respondi que diante da Lei da Anistia isso se mostrava impossível", afirmou o ministro, durante o julgamento. Depois, explicou: "A meu ver, o sistema ficou capenga", alegando que o entendimento do STF nessas duas extradições entraria em conflito com a declaração de constitucionalidade da Lei de Anistia pelo próprio tribunal.
A conclusão desse conflito apon tado pelo ministro abriria uma brecha para que o Ministério Público instaurasse processos contra militares responsáveis pelo desaparecimento de pessoas no Brasil. "Sem dúvida podem sustentar que é um crime permanente, que não houve prescrição e que o STF, ao autorizar a extradição, disse que é possível processar os militares brasileiros", concluiu.
Outro ministro, que preferiu falar reservadamente, lembrou que a Lei de Anistia perdoou crimes cometidos no passado. Mas a lei não poderia produzir efeitos sobre crimes que o STF entender que ainda estão sendo cometidos hoje. "Como o crime é permanente, é difícil imaginar que houve anistia", reforçou Tarciso Dal Maso, consultor legislativo e autor do livro O Crime do Desaparecimento Forçado de Pessoas.
A opinião não é consensual. O ministro Gilmar Mendes afirmou que os crimes de desaparecimento praticados durante a ditadura no Brasil também estariam perdoados pela Lei de Anistia. "Aqui, esses crimes seriam abarcados pela L ei de Anistia. Por isso, não seriam puníveis."
Brecha. A procuradora Eugênia Fávero, do Ministério Público Federal de São Paulo, afirmou que a decisão do STF abre margem para que sejam abertos processos no Brasil contra os agentes do Estado responsáveis pelo sequestro de pessoas cujo paradeiro até hoje é desconhecido. "Essa decisão, para nós que buscamos a responsabilização dessas pessoas, é um bom precedente", adiantou. "Na nossa opinião, o precedente está aberto e esse último julgamento só reforça essa tese", acrescentou.