Edição do jornal Estado de Minas traz artigo do promotor de Justiça Enéias Xavier Gomes sobre a PEC 37 de 2011. Conhecida como PEC da IMPUNIDADE, proposta estabelece exclusividade das investigações criminais pela Polícia.

PEC 37: impunidade a vista

Por Enéias Xavier Gomes

A Constituição Federal de 1988 dotou o Ministério Público de atribuições essenciais para o desenvolvimento do país. Desde então, a instituição exerceu investigações de ilícitos cíveis e criminais, sem grandes questionamentos. Nos últimos 10 anos, já consolidada, articulada e estruturada, intensificou o alcance de sua atuação, combatendo com êxito o crime organizado, a corrupção, a lavagem de capitais, os danos ao erário, enfim, ilícitos cometidos, via de regra, por setores da sociedade até então inatingíveis. Citem-se como exemplos as investigações envolvendo o deputado federal Paulo Maluf, crítico ferrenho às investigações pelo MP, o ex-deputado Hildebrando Pascoal, o ex-senador Luís Estevão, o juiz Nicolau dos Santos Neto, o falecido bicheiro Castor de Andrade, entre outros.

Diante desse novo cenário, em que, pela primeira vez no Brasil, detentores do poder econômico e político se tornaram alvos de investigações, processos criminais e até prisões, iniciou-se um processo de orquestrados ataques ao MP, entre os quais o questionamento acerca do seu poder de investigar. A tese é teratológica, afinal, se lhe cabe promover a ação penal pública, é preciso autonomia para formar sua convicção, muitas vezes colhendo provas para tanto, ainda que fora do inquérito policial, que nem sequer é essencial para a denúncia no ordenamento jurídico pátrio.

Como cumprir sua missão constitucional prevista no artigo 127, que lhe atribui “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” sem apurar se houve violação a esses mandamentos? Como desmantelar uma quadrilha que frauda licitações para fornecimento de merendas em Minas Gerais, conforme noticiado nos últimos dias pelo jornal Estado de Minas, sem investigação?

Levada a questão à Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), em diversas ocasiões decidiu-se o óbvio – a constitucionalidade da investigação pelo Ministério Público, que é norteada pela Resolução 13 do seu conselho nacional. Todavia, nos últimos meses, assistimos, incrédulos, ao retorno da serpente. Tramita na Câmara dos Deputados a PEC 37, a PEC da Impunidade, de autoria do deputado federal Lourival Mendes (PTdoB/MA), que, instigado por alguns setores corporativistas de delegados de polícia, pretende atribuir às polícias a exclusividade nas investigações criminais.

Pela proposta, no Brasil, só a polícia poderá investigar. Às demais autoridades administrativas, Ministério Público, Receita Federal, COAF, Banco Central e outras, caberá apenas ver a banda da corrupção passar! Também no STF a questão foi novamente suscitada, em julgamentos envolvendo o assassinato do ex-prefeito de Santo André (SP), e o descumprimento de ordem judicial referente a pagamento de precatórios pelo ex-Prefeito de Ipanema (MG). As decisões se encontram suspensas por pedido de vista pelo ministro Luiz Fux, havendo discussões apenas acerca dos limites da investigação (se para todos os delitos ou apenas alguns).

A intenção de ambas é, simplesmente, acabar com a possibilidade de investigação pelo Ministério Público – ainda que à custa de mais corrupção e impunidade. Pretende-se arrancar o coração de uma instituição ainda viva e, curiosamente, uma das poucas, ao lado da imprensa livre e setores da sociedade civil, capaz de neutralizar o poder econômico quando contrário à sociedade. Privá-lo de exercer essa essencial atribuição o tornaria estéril, transformando-o – pasmem – em apêndice das polícias, hierarquicamente subordinadas ao Poder Executivo. Ainda, ensejariam a anulação de diversos processos em tramitação que contaram com a investigação ministerial de acusados por corrupção, tortura, violência policial, crimes contra a administração pública e extermínio. Portanto, evidente para que e a quem interessam tais propostas!

Em terras tupiniquins, dever-se-ia incrementar o combate à criminalidade, discutindo formas de evitar a corrupção, os crimes do colarinho branco, enfim, a macrocriminalidade, que tanto ceifa nossos sonhos, expectativas e amanhãs. Mas não! Luta-se para diminuir as formas de investigação, tentando enfraquecer justamente quem se deveria fortalecer. Detalhe: de 0 a 10, o Brasil tem nota 3,7 na escala da corrupção, ocupando o 73º lugar na lista com 183 nações elaborada pela Transparência Internacional.

Curiosamente, as propostas só encontram paradigmas em algumas nações da África, além de contrariar diversos tratados anticorrupção assinados pelo Brasil, como a Declaração de Nápoles, Convenções de Palermo, Mérida e das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional. Por outro lado, a possibilidade de o MP investigar está consolidada, sem maiores indagações, em todos os países democráticos desenvolvidos, notadamente na França, Alemanha, Itália, Espanha e Estados Unidos. Inclusive no Tribunal Penal Internacional.

Em suma, a PEC da Impunidade e a decisão final do STF serão um marco na história do Brasil. Estamos no tempo da travessia e, se não ousarmos fazê-la, teremos chancelado, para sempre, o reconhecimento de que vivemos no movediço reino da impunidade, dando ares de profecia à célebre frase de Jô Soares: “A corrupção não é uma invenção brasileira, mas a impunidade é uma coisa muito nossa”. É neste momento que urge a participação dos cidadãos, cobrando de nossos ministros e parlamentares que o Ministério Público possa, ontem, hoje e amanhã, seguir cumprindo sua missão.

Fontes: jornal Estado de Minas, artigo escrito por Enéias Xavier Gomes, promotor de Justiça e Mestre em ciências penais/ Conamp