O Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), sancionado em janeiro de 2012 e em vigor desde abril, demora a ser implementado nos estados e municípios. O Plano Nacional Socioeducativo, bem como os estaduais e municipais, que estabelecem as suas diretrizes, ainda estão sendo debatidos e muitas medidas que já poderiam estar em prática, como número reduzido de adolescentes em cada unidade, ainda são aplicadas parcialmente.

 

A socióloga Miriam Maria José dos Santos, vice-presidenta do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), disse que uma comissão intersetorial, coordenada pela Secretaria de Direitos Humanos para monitorar a implementação do Sinase, mostra que as ações ainda são incipientes, com avanços em alguns estados e atrasos em outros. “Neste primeiro ano, os trabalhos consistiram mais na perspectiva do planejamento, de organização para a execução, na elaboração dos planos Nacional, estaduais e municipais. No primeiro ano era mais uma perspectiva de planejamento”, disse.

 

Segundo ela, até março de 2013 os gestores já teriam de elaborar planos com a participação de atores da promoção e defesa dos direitos, gestores, representantes do Ministério Público, defensoria pública. “Os planos já deveriam estar na reta final, mas como o socioeducativo não é prioridade, estão todos atrasados. Precisamos de uma atuação mais forte, seguir o que manda a Constituição e priorizar a criança e o adolescente”.

 

Para Esequias Marcelino da Silva Filho, presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo, estados e municípios dependem das diretrizes traçadas pelo Plano Nacional Socioeducativo. “É a partir do Nacional que os outros serão feitos. E todos precisam da orientação dos planos para colocar o Sinase em prática”, disse. Até agora, segundo ele, uma comissão tem se reunido para debater o tema, como num seminário recente para o planejar as atividades para 2013.

Segundo o conselheiro, alguns pontos determinados pelo Sinase já estão sendo implementados no estado de São Paulo, como unidades de pequeno porte e cumprimento de medida em regime de liberdade assistida, por exemplo. No entanto, as novas regras se restringem a algumas unidades, conforme decisão do gestor. “A maioria continua no passado porque o novo incomoda”, disse. Procurada pela reportagem da RBA, a Fundação Casa não se manifestou para explicar como o Sinase está sendo implementado nas suas unidades.

 

Articulação de Direitos

 

Arrojado, o Sinase pretende priorizar e articular educação, saúde, assistência social, lazer, cultura, esporte e profissionalização em medidas realmente socioeducativas. O objetivo é proporcionar condições para que o adolescente autor de ato infracional saia das unidades com acesso aos direitos básico que nunca teve, com melhores oportunidades e projetos de vida como qualquer cidadão. Em outras palavras, que saia da medida socioeducativa melhor do que antes de entrar. Outra inovação do Sinase é obrigar os gestores a priorizarem, no planejamento orçamentário, recursos para a socioeducação, responsabilizando aqueles que não cumprirem tal obrigação.  

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, cerca de 17 mil jovens cumprem medidas de privação de liberdade. Das 318 unidades de internação existentes no país, apenas 41 estão adequadas aos padrões arquitetônicos estabelecidos pelo Sinase. Dos 5.564 municípios brasileiros, apenas 11,4% (636 cidades) já municipalizaram seu atendimento ou estão em fase de implementação.

 

Outro levantamento, feito pela Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, mostrou que em 2007 o número total de jovens que cumpriam medida socioeducativa era de aproximadamente 60 mil. Desses, 26,6% recebiam atendimento em meio fechado, sendo que a maior parte, 71%, era de jovens em regime de internação.

 

Para Sandra Amorim, professora de Psicologia da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, em Campo Grande, e conselheira do CFP (Conselho Federal de Psicologia), a demora no avanço da implementação do Sinase reflete a resistência e o descaso que envolvem a questão do adolescente em conflito com a lei. “A maioria das pessoas valoriza excessivamente os atos desses adolescentes e acredita que eles são irrecuperáveis, um caso perdido”, disse.

 

Ela lembra que quase 90% da população brasileira quer a redução da maioridade penal para os 16 anos. “Como se isso fosse resolver o problema. A gente sabe que nossas cadeias não trazem nenhum tipo de benefício para a recuperação dos adultos, muito menos para os jovens”, disse Sandra.

 

Para completar, segundo ela, a sociedade oferece ao adolescente modelos de identificação que, do ponto de vista da Psicologia, são mais fortes por colocarem os ‘fora da lei’ como heróis de sucesso. “Na nossa cultura, pessoas que desrespeitam as regras sociais, éticas, morais, são as que se dão bem, têm mais êxito. Essas figuras de identificação na adolescência são extremamente perigosas porque, para  ganhar visibilidade, o adolescente vai copiar esses modelos.”

 

Em fase de acabamento

 

Segundo a psicóloga, um ponto importante que a sociedade ignora ou finge ignorar é que o adolescente não é um ser humano acabado, e sim em processo de desenvolvimento. “É óbvio que muitos desses jovens passaram por muitos processos de violência e por isso é impossível homogeneizar. Do mesmo modo, é impossível afirmar taxativamente que eles são criminosos sem chances de recuperação – que é o discurso recorrente.”

 

Para ela, como preconiza o Sinase, a alternativa é a oferta de mais educação – é clara a falta de vínculo desses jovens com a escola – e de todos os direitos que lhe foram negados, daí o fato de muitos profissionais entenderem que é a lei é que está em conflito com eles, e não o contrário. Embora haja experiências exitosas, em geral os adolescentes que passam por medidas socioeducativas são discriminados nas escolas, quando a educação significa a chance de uma trajetória diferenciada, de reagir. A questão, para a conselheira do CFP, torna-se mais grave quando se compara esses jovens com os de classe média, média alta, que também cometem infracionais mas que sequer chegam ao sistema. “São protegidos pela condição econômica, que restringe o ato infracional aos pobres e em especial os negros, repetindo o padrão do modelo socioeducativo ao que se vê nos presídios. Infelizmente o Brasil ainda é muito preconceituoso nas suas práticas embora as leis sejam muito avançadas”.

 

Sandra lembra dados do Ministério da Saúde que mostram que o adolescente morre muito mais do que mata, embora a mídia tradicional divulgue apenas situações nas quais o adolescente é autor de ato infracional grave. Outro dado importante: dos adolescentes em regime de internação, menos de 10% cometeu algum delito considerado grave. “Só que eles estão lá misturados a outros que cometeram esses delitos e, no atual sistema, acabam não tendo a chance de ser fortalecidos quando, pela legislação, deveriam ser  inseridos na escola, no atendimento à saúde e outros serviços para de fato se tornarem cidadãos”, diz.

 

O número de delitos é muito pequeno no geral. Há casos graves, assustadores, mas esses são exceções. Dos 10% considerados mais graves, 3% são muito graves. Os outros 97% a gente tem de assistir de forma mais humanizada porque senão a gente faz a inversão: os que estão de alguma forma mais avançados na criminalidade acabam se tornando professores de adolescentes que estão ali porque cometeram delitos mais leves. E aí a gente perde o espaço de intervenção. Se a gente conseguir avançar na operacionalização, na garantia dos direitos jurídicos desses jovens que têm direito a um defensor, a maioria não tem. Muitas vezes fica lá quando a medida deles já terminou – como acontece com adultos no sistema prisional. E como não tem defensor, ele acaba ficando sem nenhum tipo de assistência jurídica – que é uma coisa importante. O acompanhamento do processo dele tem de dar direito a defesa.

Na sua avaliação, o Sinase avança também ao estabelecer um plano individualizado de atendimento, construído por uma equipe, com participação do adolescente inclusive, na perspectiva da sua responsabilização pelo seu ato infracional e, principalmente, do seu projeto de vida dali para a frente. Assim, o modelo socioeducativo mantém o caráter de responsabilização, mas incorpora o de construção do acesso a que esse adolescente não tem acesso, inclusive o apoio familiar por falta de orientação. “As famílias em geral estão desamparadas e desorientadas sobre como lidar com um filho autor de ato infracional”, disse.

 

Outra exigência do Sinase é tirar o adolescente dessa intervenção do estado e colocá-lo no lugar de um sujeito de direitos. “Ele e sua família têm de ser responsáveis, inclusive ter a responsabilidade pelas consequências do seus atos. Mas têm o direito de serem acompanhados, instruídos, fortalecidos para isso”.

 

Segundo ela, muitas vezes a família fica refém. Como em casos em que o adolescente está mais afinado com o traficante do que com os familiares. É uma situação difícil mas a perda desse poder tem de ser restituída. “Para isso, há que se respaldar a família que passa por dificuldade. Inclui-la em projetos sociais governamentais, numa rede de garantias. E a escola deve estar esperando por esse  esse adolescente”. Não dá para culpar a a família quando muitas vezes não têm condições. A intervenção junto à família é fundamental, inclusive acionando outras parcerias da rede (Cras, Creas, saúde) quando o adolescente tem problemas com drogas – embora a maioria não seja dependente químico como se pensa. É dar o atendimento integral que ele não teve até então para que ele restaure e passe a viver.

 

Fonte: Última Instância